O ex-neonazista arrependido que 'resgata' extremistas e ajuda ex-combatente a deixar o EI
O que um neonazista e um jihadista têm em comum? "Muito", afirma Christian Picciolini, que tinha só 16 anos quando se tornou o líder de um dos grupos de skinheads neonazistas mais conhecidos nos Estados Unidos: o Chicago's CASH.
Neonazistas e islamistas são seduzidos com as mesmas táticas, diz ele: incute-se neles o medo dos outros, promete-se a eles uma vida melhor, os convence de que teriam sido especialmente escolhidos e os faz acreditar que lutam por uma "causa nobre", como a sobrevivência de sua raça ou religião.
"Mentiras", afirma Picciolini à BBC Mundo, o serviço espanhol da BBC. Há sete anos, ele se dedica a ajudar neonazistas que querem sair desta vida cheia de violência e ódio.
O ex-neonazista teve a oportunidade de confirmar isso em dezembro do ano passado, ao chegar à Bélgica para falar sobre os perigos do extremismo de direita.
Um homem que havia visto o anúncio da palestra pediu para se reunir com ele. Mas não se tratava do típico caso de um neonazista que precisava de um empurrão para mudar: era, na verdade, um ex-combatente do grupo extremista autodenominado Estado Islâmico (EI).
'Todo jovem está vulnerável'
Para Picciolini, não existe um perfil exato de quem pode se tornar um extremista. "Todo jovem está vulnerável a cair em grupos radicais, porque todos estão em busca de uma identidade, de aceitação, de um propósito de vida", diz.
Ele afirma que não cresceu sendo racista - seus pais eram imigrantes italianos que chegaram aos Estados Unidos na metade dos anos 1960 e sofreram na pele o preconceito contra os estrangeiros. Ambos tinham longas jornadas de trabalho nos sete dias da semana. "Eu me sentia muito abandonado", lembra.
Era a década de 1980. Ele tinha 14 anos no dia em que um homem saiu do carro para arrancar de sua boca o cigarro de maconha que estava fumando. "Você não sabe que é isso que os comunistas e os judeus querem que você faça, para que então eles possam te controlar?", disse o homem.
"Não sabia o que era um comunista e acho que nunca havia conhecido um judeu. Mas tinha certeza de que não queria que ninguém me controlasse", conta Picciolini.
O homem se chamava Clark Martell, chefe do Chicago's CASH. "Ele disse que meus problemas não eram culpa minha, mas causados pelos outros. Falou sobre como os negros cometiam crimes, os mexicanos roubavam nossos empregos e os judeus manipulavam os meios de comunicação."
O neonazista ofereceu ao jovem a desculpa perfeita para canalizar sua revolta adolescente: "Ele me ofereceu uma família e poder, justo no momento em que eu me sentia mais impotente".
'Destruí muitas vidas'
"Nunca fui preso, mas fiz coisas pelas quais deveria ter ido para a cadeia", admite Picciolini.
Os Chicago's CASH estamparam as manchetes dos jornais na época por terem atacado mulheres hispânicas, pintado suásticas em sinagogas e cometido atos de vandalismo contra negócios de proprietários judeus, como recorda o livro Terrorismo em Perspectiva, de Sue Mahan e Pamala L. Griset.
Mas foi a agressão a uma antiga integrante do grupo que fez com que Martell fosse parar atrás das grades. Picciolini, ainda adolescente, foi encarregado de substituí-lo.
"Eu era bom para recrutar pessoas", lembra-se. Ele criou uma banda de música que proclamava a supremacia branca para atrair pessoas mais novas - foi o primeiro grupo de skinheads dos Estados Unidos a fazer uma turnê pela Europa.
Picciolini convenceu centenas de pessoas a se juntarem aos Chicago's CASH. "Destruí muitas vidas. Eu me sinto responsável pelo que fiz", diz.
Medo de começar do zero
Mas o que leva um neonazista a querer deixar de sê-lo? Segundo Picciolini, o motivo mais comum é conhecer o objeto do seu ódio.
Ele cita como exemplo o ex-militar nova-iorquino que ligou para ele depois de ler seu livro de memórias, Violência Romântica, e lhe contou que odiava os muçulmanos e tinha vontade de atacá-los.
Picciolini viajou de Chicago para falar com o homem e marcou um encontro na mesquita de seu bairro. "Fiquei amigo dele, e, agora, marcamos de jantar toda sexta-feira", conta.
No seu caso, a razão para se afastar da violência foi outra: seu filho. "Foi a primeira pessoa que me permitiu voltar a amar depois de tantos anos de ódio. Ele me reconectou com a inocência que eu havia perdido aos 14 anos, quando me juntei ao movimento", explica.
Sentir-se bem consigo mesmo é o primeiro passo, defende: "Uma vez que você consegue isso, a ideologia se quebra".
Mas o caminho é longo. "Quando você se junta ao movimento, deixa tudo para trás: a família, os amigos, tudo o que gostava de fazer. Eu queria sair, mas tinha medo de abandonar aquilo que, naquele momento, era para mim a minha identidade, a minha comunidade. Não queria começar do zero", conta.
Ele demorou três anos para sair do grupo.
A vida depois do ódio
Uma vez fora, Picciolini estudou e se formou em Relações e Negócios Internacionais. Em 2010, criou a ONG Life After Hate ("A vida depois do ódio", em tradução livre), que se dedica a ajudar neonazistas que querem deixar o radicalismo para trás.
"Fiquei 22 anos fora do movimento, tentando entender e desmantelar aquilo que eu mesmo havia ajudado a construir", afirmou. Uma experiência que inspira confiança em muitos, inclusive ex-jihadistas, como aquele que pediu para encontrá-lo na Bélgica.
O homem havia viajado da Síria e, ao voltar, se entregou para as autoridades. Cumpriu sua pena na prisão, mas, ao sair, teve problemas para recomeçar a vida. "Os combatentes estrangeiros do EI estão voltando agora e não conhecem ninguém que tenha passado por uma transformação similar à minha, alguém que possa orientá-los", explicou Picciolini.
O antigo jihadista viu que a história do ex-neonazista e a sua tinham algo em comum. E ambos seguiam vivendo nos mesmos bairros onde haviam sido "capturados" pelo radicalismo - e onde tinham um passado difícil de apagar.
"Muitos de seus antigos amigos o veem como um traidor ou um covarde. Ele não tem conseguido trabalho, mesmo sendo engenheiro e tendo muita experiência. Ele não tinha mais com quem falar", afirma Picciolini.
"As pessoas que deixam esses grupos, sejam neonazistas ou jihadistas, precisam do apoio de outros que tenham passado pelo mesmo. Para o restante das pessoas, não é fácil entender por que caíram no extremismo", observa.
Racismo 'mais suave'
O ex-líder dos Chicago's CASH alerta para o erro de concentrar todos os esforços no extremismo jihadista e relaxar na prevenção da expansão de movimentos de extrema-direita - ferramentas como a internet e a propagação de sites de notícias falsas fizeram com que grupos como os neonazistas tenham mais facilidade para recrutar pessoas.
"Além disso, nossos políticos estão repetindo mensagens que nós (neonazistas) utilizávamos. Não sei se as eleições (americanas) provocaram mais racismo, mas elas deram forças aos racistas para sair da sombra e para que suas mensagens ganhem credibilidade", adverte.
"Às vezes, ouço os políticos dizerem as mesmas coisas que eu dizia quando era neonazista."
Picciolini diz que, há 30 anos, teve início uma estratégia para "normalizar" o racismo. "Deixamos de lado a indumentária neonazista e as suásticas, porque nos demos conta de que isso estava afugentando até mesmo as pessoas que já eram racistas."
Ele conta que a estratégia foi difundir a mensagem de ódio "de uma forma mais suave", para que ela ficasse mais fácil de ser absorvida pelo cidadão médio.
Até metade do ano passado, as vítimas fatais do extremismo de direita nos Estados Unidos superavam as de ataques jihadistas. Mas, com o massacre da boate Pulse, em Orlando, a estatística virou, segundo o centro de pesquisas New America.
Antes de deixar a Casa Branca, a administração de Barack Obama aprovou um incentivo de US$ 400 mil (IR$ 1,25 milhão) para a ONG de Picciolini desenvolver um programa de intervenção direcionado a todos os tipos de militantes radicais.
Hoje, esta e outras ideias com o mesmo fim estão sendo revistas pelo novo governo, segundo informou a imprensa americana.