Análise: Putin vive na Guerra Fria e teme revolta do povo
O presidente russo se encontra encurralado à medida que a Ucrânia se aproxima do bloco europeu, abandonando um local, até então, cativo sob a zona de influência russa
No final de junho, o recém-eleito presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko, assinou um acordo de livre comércio e cooperação política com a União Europeia. A não assinatura deste mesmo acordo, no fim de 2013, foi o estopim para uma série de conflitos sangrentos sem precedentes na Ucrânia.
A polêmica união com o bloco europeu – a qual o então presidente Viktor Yanukovych se recusou a selar, reafirmando seu apoio e aliança ao Kremlim – causou uma rachadura na Ucrânia, dividindo aqueles que eram favoráveis a uma aproximação com o Ocidente e os que falam o idioma russo e se identificam com a cultura da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Desde dezembro, portanto, o país se transformou em um campo de guerra: de um lado, separatistas pró-Rússia, do outro, as forças de segurança do governo.
O fato é que meio ano após o início de todas as revoltas, a Ucrânia, de certa forma, voltou ao ponto em que tudo começou e selou o acordo da discórdia. Afinal, o que muda a partir de agora? Quais são os impactos para as duas partes envolvidas – Ucrânia e União Europeia?
O professor da Universidade de Alberta, no Canadá, especialista em Ucrânia e política pós-comunista, Taras Kuzio, falou ao Terra e explica que ainda é muito cedo para afirmar em que sentido esse acordo poderá beneficiar a Ucrânia, uma vez que o país ainda tem muito trabalho pela frente, especialmente no que diz respeito ao que ele chama de "europeanização" de seus sistemas político, legal e econômico.
Kuzio esclarece que há uma diferença entre o acordo de associação assinado com o leste da Europa na década de 1990 e o acordo de livre comércio assinado com a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia porque este último não confere aos países a oportunidade de serem membros do bloco.
Como o pacto não prevê que a Ucrânia se torne membro da União Europeia, isso indica que ela terá "menos incentivo para realizar reformas e receberá menos assistência financeira, também por causa do seu forte legado comunista", conta Kuzio.
"É importante, do ponto de vista psicológico e da identidade nacional, que o acordo sinalize que a Ucrânia é agora parte da Europa e não mais uma nação pós-soviética, mas os benefícios econômicos aparecerão mais tarde", acrescenta.
A Rússia e o resto do mundo
Mas como fica a Rússia nessa história? Vladimir Putin alertou, assim que soube do anúncio da aliança, que a medida tomada por Poroshenko teria sérias consequências para a Ucrânia. Então, a que ponto este acordo desagrada o Kremlin? Estaria Putin com receio de perder sua influência e domínio sobre a Ucrânia?
De acordo com o professor Kuzio, Putin e os russos não enxergam a Ucrânia como um país estrangeiro, independente, e por isso não concedem a ela o direito de tomar decisões que dizem respeito a sua própria política externa.
"Putin está vivendo na guerra fria e acredita que a ex-URSSS deveria ser a esfera de influência da Rússia – assim como os Estados Unidos agiram em relação à América Latina durante a Guerra Fria. Ele vê conspirações em todos os lugares e acredita que os Estados Unidos e o Ocidente estão tentando invadir sua esfera de influência, por isso se opõe à ampliação da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e da UE (União Europeia)", avalia Kuzio.
Ou seja, nas palavras do professor, Putin teme que a onda de manifestações ultranacionalistas que eclodiram na Ucrânia influenciem a população russa a organizar protestos contra ele mesmo, a ponto de destituí-lo da presidência.
Na contramão, o leste europeu teme o imperialismo russo e apoia, fortemente, a integração da Ucrânia à Europa. A relação dos Estados Unidos com a Rússia também tem se deteriorado e a tendência é que se desgaste ainda mais, especialmente se um republicano – que tende a apresentar ainda mais oposição à Rússia – for eleito presidente em 2016.
Separatismo, cessar-fogo e a Rússia colocando 'lenha na fogueira'
Na opinião do professor, a onda separatista que abala o leste ucraniano, principalmente na cidade de Donetsk, região de ação de muito insurgentes, é artificial.
"Se a Rússia não estivesse apoiando esse movimento haveria um conflito político, mas não violento. Não há diferenças étnicas e religiosas – geralmente os dois fatores que estão por trás das guerras civis – entre o Ocidente e os ucranianos do leste. Há diferenças no que diz respeito ao idioma, mas as pessoas não vão lutar em uma guerra por causa disso", ressalta.
Embora quem acompanha o noticiário internacional possa ficar com a sensação de que os conflitos na Ucrânia tenham se convertido em uma guerra civil, o especialista em Ucrânia contesta essa visão. Segundo Kuzio, não existe uma guerra civil em curso, já que os conflitos afetam apenas duas de oito regiões onde o russo é o idioma predominante.
O presidente ucraniano, Petro Poroshenko, se recusou a estender, em 30 de junho, um cessar-fogo proposto há 10 dias, diante do descumprimento do acordo por parte dos rebeldes. À medida que os confrontos prosseguem, Putin, Poroshenko, Hollande e Merkel se envolvem em sucessivas discussões para encontrar uma solução para a crise ucraniana e um meio de impor uma nova trégua.
"É impossível dizer o que vai acontecer porque Putin é imprevisível. A Ucrânia respeitou um cessar-fogo por 10 dias, embora 27 soldados de suas forças de segurança tenham sido mortos. Poroshenko insiste em dizer que um futuro cessar-fogo tem de ser respeitado por ambos os lados e que precisa haver um monitoramento da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), na fronteira entre Rússia e Ucrânia”, conta Kuzio.
“As forças ucranianas eventualmente ganharão a batalha ao reduzir o conflito de uma insurgência composta por cerca de 15 mil homens em um pequeno conflito terrorista que envolve centenas de pessoas. Ainda assim, a Rússia poderia intervir militarmente e, dessa forma, provocar uma escalada massiva da crise com o Ocidente com duríssimas sanções. A Ucrânia tem os voluntários e os recursos para lutar, mas não tem a política cultural para alcançar a maioria da população de Donetsk, que não apoia os terroristas".
Ao que parece, apenas o tempo poderá dizer se Rússia e Ucrânia voltarão um dia a ser aliadas e se os conflitos em território ucraniano são, de fato, apenas artificiais.