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'Como a dica de um oficial nazista salvou a vida de meus avós durante a Segunda Guerra'

Um alfaiate judeu foi aconselhado a fugir da Dinamarca em 1943 por um cliente alemão. Mas por que esse líder nazista desafiaria Hitler?

23 out 2018 - 16h30
(atualizado às 16h54)
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Quando o avô judeu de Alexander Bodin Saphir estava tirando as medidas do terno de um líder nazista em Copenhague, ele recebeu um aviso importante - os judeus estavam prestes a serem capturados e deportados.

O fato de a maioria dos judeus da Dinamarca ter escapado do Holocausto foi muitas vezes descrito como um "milagre". Mas agora há indícios de que as autoridades nazistas do país sabotaram deliberadamente sua própria operação. Em relato à BBC, Saphir conta como seus avós foram salvos pela dica do cliente de uma alfaiataria da família.

Raphael Bodin, um alfaiate judeu, foi aconselhado a fugir da Dinamarca em 1943 por um líder nazista alemão
Raphael Bodin, um alfaiate judeu, foi aconselhado a fugir da Dinamarca em 1943 por um líder nazista alemão
Foto: BBC News Brasil

"Há 75 anos, em uma noite fria de outubro, meus avós, Fanny e Raphael Bodin, estavam no cais de um porto na costa leste da Dinamarca com a filha Lis, de 15 meses, nos braços.

Imagino eles espreitando na escuridão, nervosos à espera do pescador que os levaria de barco até a Suécia, uma nação neutra e segura.

Até aquele momento, os judeus da Dinamarca - ao contrário dos que estavam em outras partes da Europa ocupada - eram livres para cuidar de seus negócios. Mas tinha sido dada uma ordem para reuni-los e levá-los para a Alemanha para serem 'processados'.

Foi então que meus avós fugiram com a minha tia ainda bebê. Ao embarcarem, entregaram ao pescador uma quantia substancial de dinheiro para pagar a viagem de uma hora de barco pelo Estreito de Oresund - que liga a Dinamarca e a Suécia.

Começou a chover e minha tia desandou a chorar. O pescador, temendo que os alemães ouvissem o choro, ordenou que meus avós deixassem a criança no cais ou saíssem do barco. Eles escolheram a segunda opção. E viram o barco partir para a Suécia com seu dinheiro e talvez sua última chance de escapar.

Felizmente, não foi. Eles conseguiram fazer a travessia na noite seguinte - após darem à filha um remédio para dormir, garantindo que ela permanecesse em silêncio - e passaram o resto da guerra na Suécia.

A história deles espelha a da vasta maioria de judeus dinamarqueses. Segundo Sofie Lene Bak, professora adjunta de história na Universidade de Copenhague, 7.056 fugiram para a Suécia, enquanto 472 foram capturados e deportados para Theresienstadt, campo de concentração na atual República Checa.

Barco de pesca usado nos resgates de judeus na Dinamarca
Barco de pesca usado nos resgates de judeus na Dinamarca
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Fuga às vésperas da tragédia

O episódio ficou conhecido como o 'milagre dos resgates', mas muitos historiadores dinamarqueses acreditam agora que foi menos milagroso do que parece. E a experiência dos meus avós oferece evidências que sustentam essa teoria.

Meu avô - mais conhecido por seu apelido, Folle - sempre contou que eles conseguiram escapar graças a um oficial alemão de alta patente que procurou a alfaiataria de seu cunhado, N. Golmanns, em Istedgade, no distrito da luz vermelha de Copenhague.

Depois da guerra, meu avô abriu sua própria alfaiataria, a R. Bodin, em St. Kongensgade, uma das ruas mais elegantes da cidade, mas em 1943 ele ainda estava aprendendo sua arte.

Junto a seu cunhado, Nathan, ele tirava as medidas de clientes novos e anotava as informações relevantes nas fichas. Esses registros eram armazenados em uma escrivaninha que ficava na loja.

Suspeito que as mãos do meu avô tremiam enquanto ele tirava as medidas e ajustava o terno daquele oficial alemão em particular, que deve ter ficado satisfeito com o acabamento do traje, já que alertou os dois: 'Fujam, enquanto ainda podem. Há uma ofensiva a caminho'.

Raphael Bodin tirando as medidas de um cliente
Raphael Bodin tirando as medidas de um cliente
Foto: BBC News Brasil

Meu avô nunca mencionou o nome do oficial alemão de alto escalão, mas anos depois Nathan fez uma revelação surpreendente para minha prima Margit. A fonte do vazamento que salvou minha família dinamarquesa foi ninguém menos que Karl Rudolph Werner Best - representante da Alemanha na Dinamarca, ocupada desde 1940, e vice-chefe das SS, a temida 'tropa de choque' nazista. Era ele o responsável por garantir que os judeus dinamarqueses fossem enviados à morte.

Mas por que esse homem - integrante do círculo pessoal de Hitler, conhecido como o Açougueiro de Paris por sua incansável caça aos judeus da França um ano antes - estaria confraternizando com alfaiates judeus no distrito da luz vermelha de Copenhague e aconselhando eles a fugir? É difícil de acreditar.

Quando Margit ouviu a história, ela foi imediatamente para a escrivaninha que ainda ocupava um lugar de destaque na alfaiataria da família. Procurou as fichas de clientes de 1940 a 1943. E gelou quando se deparou com o cadastro de Karl Rudolph Werner Best.

As fichas se perderam desde então, mas a história sempre me fascinou. Há alguns anos, comecei a adaptá-la para uma peça de teatro e aprendi como os historiadores vêm reescrevendo a narrativa do 'milagre dos resgates'.

Retratos de Raphael Bodin
Retratos de Raphael Bodin
Foto: BBC News Brasil

Werner Best era doutor em direito e tinha uma habilidade incrível de burlar a lei a seu favor. Depois da guerra, não só persuadiu os tribunais dinamarqueses a transformarem sua pena de morte em uma sentença de prisão, como anos depois - quando foi acusado de assinar as ordens de execução de 8 mil poloneses - conseguiu convencer o juiz de que estava doente demais para ficar de pé.

O processo foi encerrado e ele viveu por mais 17 anos em liberdade antes de morrer de causas naturais.

Uma prioridade para Best, como representante do Terceiro Reich na Dinamarca, era manter o fluxo de produtos agrícolas para a Alemanha. Não é por acaso que a Dinamarca era conhecida como 'despensa da Alemanha' - segundo algumas estimativas, o país supria 15% das necessidades alemãs.

Para garantir isso, a estabilidade política era essencial. Mas, no verão de 1943, a Resistência dinamarquesa ganhou força, e o governo dinamarquês foi deposto ao protestar contra a nova política que exigia que os insurgentes condenados fossem executados.

A ordem de Hitler para deixar a Dinamarca 'livre de judeus' - Judenrein - chegou, portanto, em um momento desfavorável para Best.

'O verão de 1943 foi uma explosão de boicotes, greves e confrontos físicos entre dinamarqueses e alemães', diz a historiadora dinamarquesa Sofie Lene Bak. 'Best temia uma revolta e greve geral se os judeus virassem alvos.'

Assim, parece que Best organizou a operação de captura dos judeus - ao mesmo tempo em que também sabotava seu próprio plano.

Quando a dimensão do fracasso da operação se tornou aparente, Hitler enviou um telegrama a Best exigindo uma explicação. Ele respondeu que fizera o que lhe fora ordenado - tornou a Dinamarca 'livre de judeus'.

Aviso geral

O crédito pelo resgate dos judeus dinamarqueses costuma ser dado a Georg F. Duckwitz, adido naval alemão e braço direito de Best, que vazou a data da ofensiva para Hans Hedtoft, do Partido Social-Democrata dinamarquês.

Hedtoft passou, por sua vez, a informação para o rabino-chefe em exercício, Marcus Melchior, que avisou sua congregação na manhã seguinte - um dia antes do Rosh Hashaná, o Ano Novo Judaico - que não haveria celebrações naquela data. Em vez disso, todos deveriam ir para casa, resolver suas pendências e encontrar qualquer meio de fuga.

Georg Duckwitz (à esquerda) e Werner Best
Georg Duckwitz (à esquerda) e Werner Best
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Após a guerra, Duckwitz se tornou embaixador da Alemanha Ocidental na Dinamarca (1955-1958) e recebeu o título de Justo Entre as Nações, concedido pelo Yad Vashem, Memorial do Holocausto em Jerusalém. A honraria é concedida àqueles que salvaram judeus do extermínio nazista.

Mas é Werner Best quem, em última análise, é responsável pelo fracasso espetacular da ofensiva.

Os soldados encarregados de capturar os judeus receberam ordens para bater nas portas e tocar as campainhas das casas, mas sob nenhuma circunstância poderiam invadi-las ou quebrar as janelas. Houve uma família que simplesmente dormiu durante todo o processo.

E quando ficou claro que a principal rota de fuga era cruzar o Estreito de Oresund, todos os barcos de patrulha alemães foram enviados para o porto. E permaneceram lá por três semanas, enquanto a maior parte dos fugitivos atravessava para a Suécia. A explicação oficial era que os barcos precisavam de pintura. Todos eles. Ao mesmo tempo.

'A contenção dos alemães na Dinamarca é única em relação ao resto da Europa ocupada', diz Sofie Lene Bak. 'Não apenas em referência aos métodos usados na noite da operação, mas em termos dos recursos limitados usados para caçar judeus após a ofensiva.'

Nada disso contradiz as histórias de bravura do povo dinamarquês, da Resistência ou daqueles que fugiram. Em 1943, pairava um medo justificado de execução, tanto por parte dos judeus dinamarqueses quanto de qualquer um que os ajudasse. Depois de tudo que havia acontecido no resto da Europa, por que na Dinamarca seria diferente?

Meus avós passaram o resto da guerra na Suécia com a minha tia - só voltaram para casa quando o conflito acabou, em junho de 1945. Como muitos outros, foram recebidos com flores recém-colhidas por vizinhos dinamarqueses.

Raphael e Fanny, avós de Bodin Saphir, na praia
Raphael e Fanny, avós de Bodin Saphir, na praia
Foto: BBC News Brasil

A peça de Bodin Saphir, Rosenbaum's Rescue ("O Resgate de Rosenbaum", em tradução livre), vai estrear em Londres em janeiro de 2019.

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