Húngaros relembram medo durante invasão nazista há 70 anos
Refugiados que vieram para o Brasil relembram anos em que viveram "com medo e sem perspectivas"; por duas gerações, famílias silenciaram acontecimentos em campos de concentração
A menos de dois meses das eleições parlamentares, a Hungria lança seus olhos em uma imagem: o anjo Gabriel sendo atacado por uma águia. Este seria o retrato proposto, pelo atual governo populista de direita, para um monumento em Budapeste em homenagem aos mortos pelo ataque nazista ao país, que iniciou em 19 de março de 1944, e que completa 70 anos nesta quarta-feira.
Porém, o “projeto de estátua” gerou uma discussão política e a revolta dos judeus que não aceitam a ideia de que a Hungria - supostamente representada pelo anjo atacado - tenha sido passiva em relação às mortes ocorridas no país nos anos finais da Segunda Guerra Mundial. Historiadores e representantes da comunidade judaica húngara esperavam ver no monumento uma maneira de reescrever a história, desmentindo a “lenda” de que o governo húngaro não teve participação e responsabilidade pelo envio de meio milhão de judeus a Auschwitz, em 1944, por exemplo. Mas, esta não parece ser a intenção do projeto.
Em meio à polêmica em torno da estátua - que deverá ter a inauguração atrasada -, o governo de Viktor Orbán preparou uma programação com outras homenagens durante toda a semana, a partir desta quarta-feira, para relembrar a invasão alemã, que foi tardia, mas deixou rastros terríveis entre as famílias húngaras.
“Vivíamos sempre com medo e sem perspectivas”, lembra húngara
Apesar de tardia, já no final da Segunda Guerra Mundial, a invasão da Hungria aconteceu num período crítico, quando os nazistas já executavam a “Solução Final para a Questão Judaica” (planejada na Conferência de Wannsee, em 20 de janeiro de 1942), em outras palavras, planejavam exterminar todos os judeus da Europa.
Após a invasão nazista em Budapeste, as autoridades húngaras determinaram que os judeus passassem a viver confinados em casas demarcadas, conhecidas como "Casas da Estrela de David".
“Não é fácil responder sobre esta questão em poucas palavras. Vivíamos em uma ditadura, sempre com medo e sem perspectivas. As minhas lembranças bonitas são de antes da Segunda Guerra Mundial”, desabafa a húngara Eva Matravolgyi, que se mudou para o Brasil em 1957, aos 23 anos, acompanhada da mãe, do marido e de sua filha mais velha, na época com 2 anos.
Eva se recorda de poucos detalhes dos anos em que os nazistas dominaram seu país, já que era criança, mas a tristeza ainda está presente nas poucas lembranças. “Durante o nazismo, soubemos de algumas atrocidades e isso foi horrível e triste”, diz. A família de Eva tinha origens ligadas ao judaísmo. Por causa da ameaça nazistas, todos se converteram ao catolicismo antes de ela nascer.
Ao chegar ao Brasil, somente com a roupa do corpo, fugindo da Revolução Húngara - iniciada mais de 10 anos depois do final da guerra-, a família Matravolgyi teve de se adaptar à nova cultura e língua, recomeçando a vida na cidade de São Paulo. “Saímos da Hungria em novembro de 1956, na ocasião da revolução, de forma ilegal. Minha família e eu, e outros milhares de húngaros procurando uma vida livre”, conta.
“Procuramos a Embaixada do Brasil em Viena, pois a minha irmã já morava aqui. Com ajuda internacional, conseguimos chegar ao país de navio no dia 7 de fevereiro de 1957, apenas com a roupa do corpo. Era um mundo novo, mas tínhamos muita força de vontade para trabalhar e construir um futuro para nossa família”, diz Eva.
Como não sabiam português, Eva e o marido puderam aprender melhor a língua junto dos filhos, que estudavam em escolas brasileiras. Para conseguir ter uma padrão de vida decente, o casal trabalhou 14 anos seguidos, sem férias.
A filha de Eva, Sílvia Matravolgyi, que nasceu no Brasil, diz que os pais vieram “muito abertos à nova cultura, mas não se fechando à comunidade húngura”. Apesar disso, mantiveram algumas tradições na família, como receitas culinárias e canções húngaras de Natal. “Aprendi a fazer alguns pratos húngaros, como por exemplo, uma sopa chamada “gulas” e um frango ensopado (paprikas csirke)”, lembra Sílvia.
Hoje, com a família formada e a vida refeita, a descendente de família judia no país europeu considera o Brasil como sua nação “adotada”. “Sabemos que o nazismo trouxe horrores, mortes, sofrimentos... Então a vida de minha família teve uma chance de mudar completamente. Aqui nasceram outros dois filhos e este é o lugar onde nasceram meus seis netos – brasileiros”, diz Eva Matravolgyi, que ainda tem família na Hungria e “várias amigas da juventude”.
“O século 20 foi uma sequência de tragédias”
Na Hungria, o Holocausto começou anos antes da ocupação alemã, com pogroms anti-semitas (pogrom - do russo погром - é um ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea de suas casas, negócios e centros religiosos). Há vários casos relatados de assassinatos em massa e deportação de milhares de judeus para campos de trabalho, o que fez milhares de húngaros fugirem para outros países, tais como Estados Unidos, Canadá, Argentina e Brasil.
“O século 20 foi para a Hungria uma sequência de tragédias. A invasão nazista de 1944 foi apenas mais um episódio fatídico”. A afirmação é do húngaro Szabolcs B. Fejer, de 75 anos, que veio ao Brasil com os pais em 1947. Para ele, a Hungria só recuperou sua independência em 1991, quando o último soldado russo deixou o país. “Após mais de quatro décadas de nazismo, comunismo, repressão, ruína econômica, o país procura se reerguer. Mas a ‘herança maldita’ é pesada”.
Fejer se recorda que havia notícias de que Hitler e o partido nazista “eram inimigos ferrenho dos judeus. (...) bastava ver o que se passava na Alemanha muito antes do início da guerra”. Porém, o húngaro conta que não se falava sobre os campos de concentração – assunto que, até hoje, ainda é tabu entre as famílias, que silenciaram por duas gerações o que aconteciam nestes locais. “Sobre campos de concentração, não havia informações. Os meus pais souberam dos campos de concentração e das deportações de judeus da Hungria quando já estavam na Alemanha”, diz Fejer.
Fejer mantém a cultura de seu país aqui no Brasil, mesmo após sete décadas vivendo fora. No aniversário da invasão nazista em seu país, ele acredita que a Hungria busca construir um caminho cristalizado, mas que conseguirá apenas daqui alguns anos. “Na minha visão, após um século trágico, a sociedade húngara, mesmo caminhando em zigue-zague, procura cristalizar um caminho. E isto, certamente, ainda levará algumas décadas”, finaliza.
Invasão nazista na Hungria completa 70 anos; veja fotos: