Refugiados veem Eurotúnel como "última chance"
Centenas de migrantes se arriscam, todos os dias, para atravessar a passagem entre França e Reino Unido. O que é apenas um problema de segurança para autoridades significa sobrevivência para quem tenta a sorte.
"Vamos embora! A gente vai tentar agora." Em voz baixa, um homem diz para cerca de 30 refugiados o seguirem por uma trilha. Durante horas, o grupo de africanos havia esperado em volta de uma fogueira, feita em um bosque próximo do Eurotúnel. Perto da meia-noite, o "guia" faz um buraco com um alicate na primeira cerca de arame farpado e dobra as pontas afiadas do que sobrou.
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Vestido numa jaqueta vermelha, o primeiro refugiado passa pelo buraco e escala a próxima cerca, com três metros de altura. Rapidamente, oito jovens o seguem, iluminados pelos holofotes de três equipes de televisão, que estão preparando reportagens sobre a situação no túnel do Canal da Mancha. Poucos minutos depois, quatro viaturas surgem do outro lado da cerca, com as luzes acesas.
Há sensores no arame farpado. Toda vez que um buraco é aberto, um alarme soa no posto de vigilância localizado perto da entrada do túnel. Assim que os guardas aparecem, os refugiados dão meia-volta, tranquilamente.
Distraindo as autoridades
Nesta noite, estão em serviço cerca de 200 seguranças da operadora do Eurotúnel e 300 policiais franceses. Ao mesmo tempo, centenas de refugiados, divididos em pequenos grupos, tentam alcançar o túnel. Pela manhã, a empresa informava que, desse total, de 100 a 150 conseguiram atravessar a cerca e foram capturados pelos guardas.
Já o número daqueles que efetivamente conseguem atravessar o canal da Mancha por baixo, seja pulando em um trem de carga ou se escondendo em um caminhão, é incerto. Não existem dados oficiais sobre passageiros clandestinos que atravessam os 50 km do túnel e chegam a salvo ao lado britânico.
Há semanas, grupos organizados de refugiados tentam, todas as noites, atrair os policiais para diversas partes da cerca e distraí-los para que alguns possam escapar. Nesta semana, muitos conseguiram. Segundo a polícia francesa, os guardas capturaram 3.500 migrantes ilegais – em princípio, nenhum deles com o uso da violência.
Por medidas de segurança, as duas entradas do túnel, próximas da cidade de Calais, foram interditadas. Às vezes, centenas de refugiados bloqueiam os acessos à rodovia ou às plataformas, causando atrasos na via subterrânea e congestionamentos em Calais e na cidade britânica de Dover – do outro lado do canal.
De acordo com a imprensa francesa, já ocorreram nove mortes desde o começo de junho. Geralmente, as vítimas são migrantes que acabam, na escuridão do túnel, atropelados por caminhões ou simplesmente não sobrevivem ao tentar pular nos vagões de carga.
Sem escolha
Um refugiado da Síria, que se identifica como Hamid, mas não quer ser reconhecido, conta que vai tentar outra vez nesta noite. Junto com o sobrinho, o sírio de 40 anos passou meses cruzando a Europa por terra até chegar ao Reino Unido.
"Minha esposa mora lá", diz ele, apontando para o mar. "Quero vê-la, por isso vou para a Inglaterra", diz Hamid, que não, porém, o que o espera no país – nem como será a reação das autoridades caso for capturado.
Faz uma semana que o sírio vive na "selva" de Calais, como é chamado por refugiados e moradores da cidade o aglomerado de tendas e barracas ao sul do município. Estimativas apontam para um número de 3 a 5 mil clandestinos, que esperam por uma chance de cruzar o canal da Mancha.
Todas as noites, os migrantes atravessam os 8 quilômetros que separam o acampamento do Eurotúnel. No dia da reportagem, Hamid e seu sobrinho caminham sozinhos. Eles querem economizar o dinheiro dos "coiotes", que costumam embolsar centenas de euros com o serviço.
No caminho, os migrantes passam em frente a shoppings enormes, cinemas e restaurantes de fast-food – construídos para os turistas perto da saída do túnel. Enquanto estes levam as sacolas cheias de compras para os carros, os migrantes, apenas com a roupa do corpo, passam sorrateiramente pelo estacionamento em direção ao túnel.
As organizações humanitárias, que levam diariamente refeições aos milhares de refugiados, afirmam que a situação está cada vez mais difícil. Cada vez mais pessoas, em sua maioria de Síria, Eritreia e Sudão, têm se arriscado pelo túnel. E a fiscalização de caminhões, nos quais os refugiados se escondem, tem ficado mais rigorosa.
"Sei que é difícil e perigoso passar pelo túnel", diz Hamid. "Mas não tenho outra escolha. Ou você conhece outra passagem? Quem sabe, no porto, com a balsa?"
Há anos sem solução
Calais convive com os refugiados desde 1999. Naquele ano, foi erguido o primeiro acampamento da cidade. Em 2003, o então ministro francês do Interior, Nicolas Sarkozy, desativou o local. Pouco tempo depois, surgiu outro acampamento a leste da cidade, próximo da estrada para o porto. Outras aglomerações também têm surgido em lotes vazios.
Atrás de um supermercado popular, perto de um acesso à rodovia, dezenas de refugiados se recolhem nesta noite. Entre eles, há mulheres e crianças. As mulheres podem ir ao supermercado, durante o dia, para comprar pão, molho para massa e algumas bebidas. Já os homens africanos são barrados pelos seguranças que ficam na entrada. O segurança, também de origem africana, só deixa entrar franceses brancos.
Constantemente, o governo britânico exige que as fiscalizações de segurança sejam feitas com mais rigor do lado francês do Eurotúnel. O Reino Unido tem dado dinheiro para que haja reforço nas cercas e barreiras.
O atual ministro francês do Interior, Bernard Cazeneuve, que prometeu transferir 120 policiais para Calais, também exigiu maior envolvimento da operadora do túnel. Contudo, o diretor da operadora do Eurotúnel, Jacques Gounon, discorda de Cazeneuve. Segundo ele, Reino Unido e França devem se ocupar com mais intensidade do problema dos refugiados na Europa. Além disso, Gounon exigiu investimentos de dez milhões de euros para implantar uma maior segurança.
Nesta semana, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, também entrou na briga. Durante uma viagem oficial a Cingapura, ele disse estar muito preocupado com os turistas britânicos que estão ficando presos nos congestionamentos em Dover. Já o Partido Independente do Reino Unido (UKIP) foi além. A legenda, que faz parte da direita populista do país, exigiu uma intervenção militar para que os refugiados sejam afugentados.
Mas os imbróglios políticos não chegam a ocupar o sírio Hamid. Ele precisa se preocupar em sobreviver, diz em uma conversa por telefone com a esposa, que vive na Inglaterra. Cansado, o migrante se senta na grama, depois de esperar por horas à beira da estrada. Acendendo uma guimba de cigarro, ele suspira. "Antes da guerra na Síria, eu tinha uma loja. Agora, tenho isso aqui."