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Genocídio em Ruanda: 'Não tinha como dizer ao meu filho qual dos homens que me estupraram era seu pai'

Jean-Pierre é uma das incontáveis crianças que foram concebidas durante estupros no massacre em Ruanda, que deixou mais de 800 mil mortos em 1994; sua mãe, Carine, foi estuprada por '100 homens ou mais'.

20 jun 2019 - 07h22
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Carine e seu filho Jean-Pierre, um das milhares de crianças nascidos como resultado de estupro durante o genocídio em Ruanda
Carine e seu filho Jean-Pierre, um das milhares de crianças nascidos como resultado de estupro durante o genocídio em Ruanda
Foto: BBC News Brasil

Um rapaz de 24 anos cuja mãe foi estuprada no genocídio em Ruanda contou à BBC como descobriu as circunstâncias de seu nascimento.

Os nomes foram alterados no relato para preservar a identidade da família.

Jean-Pierre diz que começou a questionar quem era seu pai quando precisou preencher um formulário, no fim da escola primária, que pedia para informar o nome dos pais.

"Eu não o conhecia - não sabia o nome dele", diz.

Aviso: Algumas pessoas podem considerar parte deste conteúdo perturbador

Não ter pai em casa não era incomum: muitas outras crianças não tinham pai - mais de 800 mil pessoas foram mortas durante o genocídio em Ruanda em 1994. Mas elas sabiam o nome do pai delas.

Jean-Pierre ouvia rumores no vilarejo - mas levou anos até finalmente descobrir toda a verdade.

A história, diz sua mãe Carine com firmeza, "não é algo para se digerir de uma só vez".

"Ele tinha ouvido versões diferentes. Ouviu fofocas. Todos na comunidade sabem que eu fui estuprada. Não havia nada que eu pudesse fazer em relação a isso", explica.

"Meu filho ficava perguntando quem era seu pai. Mas entre os 100 homens ou mais que me estupraram, eu não tinha como saber quem era o pai."

'Eu não podia fugir'

Não se sabe exatamente quantas crianças nasceram como resultado de estupros durante o massacre de 100 dias em 1994.

A Organização das Nações Unidas (ONU) tem realizado esforços para acabar com a violência sexual relacionada a conflitos - o estupro foi usado como arma de guerra na Síria, na Colômbia, na República Democrática do Congo e em Mianmar no ano passado.

Nesta quarta-feira (19), Dia Internacional para Eliminação da Violência Sexual em Conflito, sobreviventes estão compartilhando histórias nas redes sociais usando a hashtag #EndRapeinWar ("Fim dos estupros de guerra", em tradução livre).

Mulher observa mural com o nome das vítimas do genocídio, que completa 25 anos
Mulher observa mural com o nome das vítimas do genocídio, que completa 25 anos
Foto: AFP / BBC News Brasil

Mas não é fácil para os envolvidos relembrar esses eventos - mesmo um quarto de século depois. Ao ouvir a história de Carine, fica claro por que ela esperou até que seu filho tivesse idade suficiente para saber a verdade.

Ela tinha mais ou menos a mesma idade dele na primeira vez em que foi estuprada - uma das centenas de milhares de mulheres e meninas tutsis que, acredita-se, foram agredidas sexualmente por vizinhos, milícias e soldados hutus.

O genocídio tinha acabado de começar e ela ainda estava sangrando por causa de duas facadas que levou de cada lado do rosto - ferimentos que até hoje dificultam sua fala e alimentação.

Os agressores - pessoas que outrora faziam parte da mesma comunidade - a arrastaram até a beira de um poço onde estavam jogando os corpos de homens, mulheres e crianças que haviam assassinado em uma escola.

Mas apesar dos ferimentos, apesar da dor, Carine sabia que não queria morrer. Ela também sabia que não queria morrer quando um grupo de soldados a agrediu sexualmente com galhos de árvore e gravetos horas depois, causando danos inimagináveis.

Só quando outro grupo a atacou, mordendo todo seu corpo, que ela decidiu que não queria mais viver.

"Nessa hora eu queria morrer logo. Eu queria morrer várias vezes."

Mas sua provação mal tinha começado: o hospital que tentou salvar sua vida foi rapidamente dominado pela milícia hutu.

"Eu não podia fugir. Não conseguia porque estava toda quebrada", diz ela.

"Quem quisesse fazer sexo comigo, conseguia. Se os criminosos quisessem urinar, podiam urinar em cima de mim."

Só quando o hospital foi libertado pela Frente Patriótica Ruandesa (RPF) que Carine finalmente conseguiu o tratamento que precisava, e foi autorizada a voltar para sua aldeia - fraca, devastada, sangrando, mas viva.

Quando os médicos descobriram que ela estava grávida, ficaram chocados.

"Quando o bebê nasceu, não conseguia entender por quê. Não conseguia acreditar que o menino tinha vindo de mim. Estava sempre pensando no que aconteceu. Depois de dar à luz, resolvi ficar com o bebê - embora não sentisse amor algum."

'Crianças abandonadas'

Essa narrativa - ou variações dela - foi contada centenas de vezes a crianças em Ruanda nos últimos 25 anos, embora raramente de forma tão aberta.

"O estupro é um tabu. Na maioria dos casos, a vergonha recai sobre as mulheres, em vez do homem", afirma Sam Munderere, diretor da Fundação Ruanda, que oferece apoio educacional e psicológico a mães e filhos nascidos como resultado de estupro durante o genocídio.

Em alguns casos, diz ele, o estigma fez com que os familiares pedissem às mães para abandonar os filhos. Em outros, causou o fim de casamentos.

As mulheres mantinham isso em segredo até onde dava. Como resultado, muitas crianças só se deram conta de como foram concebidas quando, como Jean-Pierre, precisaram preencher o tal formulário.

"A questão é as mães contarem às crianças como elas nasceram depois do genocídio. Era mais fácil dizer simplesmente: 'Seu pai foi morto durante o genocídio'.

"Mas à medida que as crianças crescem, fazem muitas perguntas, e a mãe meio que é pressionada a dizer a verdade."

Ao longo dos anos, a Fundação Ruanda ajudou mães a encontrar as palavras certas para contar suas histórias, mas a verdade, reconhece Sam, pode ser traumática.

"Os efeitos podem ser prolongados; os efeitos podem passar de geração em geração", diz.

Ele cita a história de uma jovem que escondia do marido a verdade sobre seu pai. Se ele soubesse, dizia ela, prejudicaria seu casamento.

Tem ainda o caso de uma mãe que admitiu que maltratava a filha porque acreditava que o comportamento desobediente dela se devia a "como ela nasceu".

E há muitas mães que, como Carine, simplesmente se sentem desconectadas dos filhos.

Fora o impacto duradouro disso tudo, que ainda precisará ser observado.

"Há consequências em que não pensaríamos", destaca Munderere.

"Os jovens têm seus próprios desafios e estamos fazendo o melhor possível para apoiá-los para que possam se encaixar na sociedade, para sentirem que são tão bons quanto qualquer outro jovem em Ruanda."

O trauma do vínculo

Quando Jean-Pierre tinha 19 ou 20 anos, Carine finalmente contou a ele toda a história da sua concepção e nascimento.

Segundo ela, o filho aceitou. Mas ainda assim, sente que há um buraco em sua vida, relacionado à figura paterna.

Surpreendentemente, ele não sente ódio pelo homem que atacou sua mãe - e foi então que Carine também decidiu perdoar.

"Uma das coisas que me deixou mais traumatizada foi pensar neles. Quando você perdoa, se sente melhor", diz ela, com naturalidade.

Mulher desaba aos prantos, com o bebê nas costas, após fugir de Ruanda em 1994
Mulher desaba aos prantos, com o bebê nas costas, após fugir de Ruanda em 1994
Foto: Reuters / BBC News Brasil

"Nunca senti raiva dele", acrescenta Jean-Pierre. "Às vezes penso nele: quando me deparo com desafios da vida, sinto que adoraria ter um pai para me ajudar a resolver esses problemas."

Ele planeja trabalhar como mecânico e um dia ter sua própria família.

"Estou planejando ajudar minha família também", diz ele, apesar de tudo isso exigir dinheiro - e o dinheiro ser escasso.

Já Carine buscou terapia logo no início, o que a ajudou a se relacionar com Jean-Pierre à medida que ele crescia:

"Sinto que ele é meu filho agora."

A proximidade dos dois fica evidente quando se sentam juntos para observar as colinas verdejantes na porta da casa nova, comprada com a ajuda da Survivors Fund (Surf) - instituição de caridade baseada no Reino Unido que apoia a Fundação Ruanda.

A casa fica nos arredores da aldeia onde ela cresceu - de onde fugiu quando sua família tentou fazê-la desistir de Jean-Pierre.

Mas agora a situação está tranquila. Eles se sentem acolhidos pela família e pela comunidade.

"Eles sabem que eu sobrevivi por muito tempo vivendo com um trauma e que estou feliz aqui", diz ela.

Jean-Pierre, por sua vez, está cheio de orgulho da mãe e do que ela alcançou:

"É muito difícil de ver, mas fiquei muito feliz com o progresso dela."

"O jeito que ela aceitou o que aconteceu. O jeito que ela pensa sobre o futuro e o caminho a seguir."

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