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Guerra na Ucrânia: a realidade paralela mostrada pelo principal buscador da internet na Rússia

Em muitos lugares, fazer uma busca na internet é uma porta de entrada para um mundo mais amplo de informações, mas na Rússia é parte de um sistema que ajuda a manter as pessoas presas a uma realidade alternativa.

20 nov 2022 - 16h24
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Graphic shows images of mass burials in the Ukraine city of Bucha and people waving at Russian troops in Crimea
Graphic shows images of mass burials in the Ukraine city of Bucha and people waving at Russian troops in Crimea
Foto: BBC News Brasil

Em muitos lugares, fazer uma busca na internet é uma porta de entrada para um mundo mais amplo de informações, mas na Rússia é parte de um sistema que ajuda a manter as pessoas presas a uma realidade alternativa.

Pouco depois de um ataque com mísseis russos deixar 20 mortos na cidade ucraniana de Kremenchuk em junho, Lev Gershenzon — ex-gerente da empresa de tecnologia russa Yandex — digitou o nome da cidade no mecanismo de busca da companhia para saber mais.

Ele ficou chocado com os resultados que apareceram.

"As fontes que apareciam no topo da página eram estranhas e obscuras", disse ele à BBC.

"Havia um blog de um autor desconhecido alegando que as informações sobre as vítimas eram falsas."

O Kremlin mantém um forte controle sobre a mídia do país, especialmente a TV, que glorifica a invasão da Ucrânia pela Rússia como uma missão de libertação e rejeita relatos de atrocidades, dando como falsos.

A internet na Rússia foi por muito tempo o principal espaço para fontes alternativas de informação, mas depois de dar início à guerra em fevereiro, o Kremlin lançou uma ofensiva contra a imprensa independente online.

A agência de direitos digitais Roskomsvoboda estima que, nos primeiros seis meses do conflito, cerca de 7 mil sites foram bloqueados na Rússia, incluindo os de grandes meios de comunicação independentes e grupos de direitos humanos.

Nosso experimento

A BBC Monitoring, área da BBC dedicada à cobertura da mídia ao redor do mundo, queria descobrir o que as pessoas na Rússia veem quando fazem uma pesquisa na internet atualmente.

Usamos uma rede privada virtual (VPN, na sigla em inglês), para parecer que estávamos pesquisando na web a partir da Rússia.

Entre junho e outubro, realizamos dezenas de pesquisas nos principais mecanismos de busca da Rússia — Yandex e Google — por palavras-chave relacionadas à guerra na Ucrânia.

O Yandex é uma das grandes estrelas da cena tecnológica russa. É responsável pela maior ferramenta de busca do país e se apresenta como independente das autoridades.

De acordo com estatísticas da própria companhia, seu buscador é usado em cerca de 60% das pesquisas feitas na web na Rússia, enquanto o Google é responsável por aproximadamente 35%.

Desde o início da guerra, o Yandex enfrentou críticas pelo viés pró-Kremlin dos sites e histórias apresentadas em seu agregador de notícias, o Yandex News. Em setembro, vendeu o Yandex News para o proprietário da rede social VK, ligada ao Kremlin.

Mas o Yandex mantém o controle de seu mecanismo de busca geral — e os resultados do experimento da BBC Monitoring revelam uma realidade alternativa dominada pela propaganda russa sobre a guerra.

Nenhuma menção às atrocidades

Um tema pesquisado foi Bucha, a cidade ucraniana onde centenas de civis foram mortos por tropas russas antes de se retirarem no início de abril.

As mortes chocaram o mundo, mas na Rússia, muitos parecem acreditar na versão da imprensa estatal de que foram encenadas pela Ucrânia.

Os resultados de busca do Yandex sobre os assassinatos de civis em Bucha, como se a pesquisa tivesse sido feita na Rússia (à esquerda), apresentavam postagens de blogs negando que a culpa seja da Rússia, enquanto os resultados do Google no Reino Unido falavam de evidências das atrocidades
Os resultados de busca do Yandex sobre os assassinatos de civis em Bucha, como se a pesquisa tivesse sido feita na Rússia (à esquerda), apresentavam postagens de blogs negando que a culpa seja da Rússia, enquanto os resultados do Google no Reino Unido falavam de evidências das atrocidades
Foto: BBC News Brasil

Quando buscamos por Bucha no Yandex — usando uma VPN como se estivéssemos na Rússia e digitando em russo —, a página principal de resultados fez parecer que os assassinatos nunca haviam ocorrido.

Três dos nove principais resultados eram postagens anônimas em blogs negando o envolvimento das tropas russas. Os seis restantes não continham reportagens independentes dos eventos.

A descoberta de uma vala comum usada para sepultamento em massa, em outubro, em Lyman, depois que a cidade foi retomada das mãos das forças russas, também se refletiu no Yandex do ponto de vista pró-Kremlin. Várias notícias pró-Kremlin culpando "nazistas" ucranianos pelas mortes estavam entre os 10 primeiros resultados.

A busca por "Ucrânia" no mecanismo de busca também produziu resultados que tendem fortemente para a narrativa do Kremlin.

Quatro dos nove resultados que apareceram na primeira página estavam vinculados a meios de comunicação pró-Kremlin, e nenhum à mídia independente.

Lampejos de reportagens independentes apareceram apenas ocasionalmente nos resultados de pesquisa do Yandex com links para artigos da Wikipedia ou YouTube.

Solicitado pela BBC a comentar, o Yandex disse que sua busca na Rússia "exibe conteúdo [que está] disponível na internet, excluindo sites que são bloqueados pelo órgão regulador [de mídia]". E negou que houvesse qualquer "interferência humana" nos resultados do ranking.

Os resultados do Yandex na Rússia (à esquerda) e do Google no Reino Unido (à direita) deram destaque para as valas comuns em Lyman, mas no Yandex, os conteúdos descreviam a exumação dos corpos como 'profanação'
Os resultados do Yandex na Rússia (à esquerda) e do Google no Reino Unido (à direita) deram destaque para as valas comuns em Lyman, mas no Yandex, os conteúdos descreviam a exumação dos corpos como 'profanação'
Foto: BBC News Brasil

O que será que acontece então se você mudar do Yandex para o segundo maior mecanismo de busca da Rússia, o Google?

Pesquisar no mecanismo de busca da empresa com sede nos EUA, usando nossa VPN configurada para um local russo e digitando em russo, ainda gerou como resultado meios de comunicação pró-Kremlin, mas misturado com algumas fontes independentes e ocidentais.

Ainda mais fontes independentes apareceram quando pesquisamos no Google com a VPN configurada como se estivéssemos no Reino Unido, embora ainda digitando em russo. Havia muitos resultados abordando as mortes de civis ou a guerra.

O Google disse à BBC que sua busca "reflete o conteúdo que está disponível na internet aberta", e seu algoritmo é treinado para "exibir com destaque informações de alta qualidade de fontes confiáveis".

Depuração dos resultados

Por que então os resultados de pesquisa do Yandex diferem tanto dos do Google?

Vários especialistas com quem a BBC conversou disseram acreditar que era improvável que uma manipulação em larga escala estivesse ocorrendo dentro do Yandex, uma vez que isso seria muito complicado de fazer.

Uma possibilidade é que os resultados da empresa estejam simplesmente sendo enviesados pela ofensiva do Kremlin contra reportagens independentes sobre a invasão.

Como milhares de sites foram bloqueados pelo órgão regulador de mídia da Rússia, grandes quantidades de informações não aparecem nos resultados de pesquisa do Yandex.

"Eles [as autoridades] podem depurar os resultados completamente", disse Alexei Sokirko, ex-desenvolvedor do Yandex, à BBC.

Ao mesmo tempo, o Kremlin está investindo bastante para garantir que o conteúdo da web seja criado refletindo sua própria visão de mundo, ele acrescentou.

Os especialistas em busca Guido Ampollini e Mykhailo Orlov, da empresa de marketing GA Agency, dizem que isso também pode potencialmente distorcer os resultados que os usuários veem no Yandex, já que o algoritmo do mecanismo de busca pode recompensar o material pró-Kremlin com posições mais altas no ranking e baixar a posição de visões alternativas.

Tráfego artificial na web

O uso de uma VPN pode ajudar os russos a descobrir mais sobre a guerra em seu próprio idioma?

Se eles estiverem usando o Yandex para encontrar essas informações, então não necessariamente.

Ao pesquisar neste mecanismo com a VPN configurada para o Reino Unido e usando o idioma russo, uma ou outra fonte independente apareceu, mas as fontes pró-Kremlin ainda dominavam.

Ampollini e Orlov dizem que o conteúdo pró-Kremlin parece cuidadosamente adaptado para fazer o algoritmo classificá-lo mais alto no ranking.

Em um site de notícias obscuro que apareceu com destaque nos resultados, eles descobriram sinais de possível manipulação do tráfego na web.

Um grande número de links potencialmente artificiais que remetem ao site foram encontrados em sites externos — uma técnica comum para melhorar a posição de um site no ranking do resultado das buscas.

Por fim, o Yandex pode estar refletindo o fato de que os próprios usuários russos estão escolhendo conteúdo pró-Kremlin.

O especialista em buscas Nick Boyle, da agência de marketing digital The Audit Lab, disse à BBC que — diferentemente do Google — o Yandex leva em conta o comportamento do usuário.

Isso significa, por exemplo, que a posição de um site no ranking da página de resultado da pesquisa pode ser afetada pelo número de visitas a ele. O Google diz que esse não é o caso de seu mecanismo de busca.

A equipe da GA Agency acha possível que muitos russos estão clicando em conteúdo que retrata seus militares positivamente, levando o algoritmo do Yandex a recompensá-lo com posições mais altas no ranking.

Lev Gershenzon acredita que, independentemente de como o domínio do Kremlin sobre os resultados de busca do Yandex tenha sido alcançado, isso significa que qualquer pessoa que queira questionar o que ouve na mídia estatal só obterá informações que confirmam a visão oficial.

"Você abre a página principal do Yandex e começa [procurando por] Kremenchuk [onde um ataque a míssil atingiu um shopping] para obter uma visão alternativa de outras fontes, e tudo o que você obtém é 'sim, você está certo, é falso' — e é isso", disse ele à BBC. "É como um golpe duplo."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63622918

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