Guerra na Ucrânia: 'Este é o maior desafio para a Europa desde a 2ª Guerra Mundial', diz historiador
Timothy Snyder, especialista em Europa Central e Oriental, analisa em entrevista à BBC o que está em jogo com a invasão russa da Ucrânia — e como se compara ao passado.
Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, surgiram questões inevitáveis: o que isso significa para a Europa? Quais são as intenções do presidente russo, Vladimir Putin? Existe o risco de uma terceira guerra mundial?
"É um momento semelhante a 1938 ou 1939", adverte o renomado historiador americano Timothy Snyder, especializado em Europa Central e Oriental, em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, na qual respondeu a estas e outras perguntas.
A seguir, um resumo da conversa por telefone com Snyder, professor de história da Universidade de Yale, nos EUA, e autor de livros sobre a Rússia, Ucrânia e Segunda Guerra Mundial, como Terras de Sangue - A Europa Entre Hitler e Stalin.
BBC News Mundo - Como você definiria este momento para a Europa em termos históricos?
Timothy Snyder - É um momento semelhante a 1938 ou 1939. É um momento de ser ou não ser. Você tem ou não tem um sistema? Você tem regras ou não tem regras? Tudo é possível ou nem tudo é possível?
A forma como os europeus pensaram em si mesmos foi em oposição à Segunda Guerra Mundial. Acho que, de certa forma, isso acabou.
Os europeus, se quiserem cooperar e ter algum tipo de sistema bem-sucedido, creio que pensarão neste momento nas próximas décadas.
BBC News Mundo - Você concorda com a ideia de que esta é a "hora mais sombria da Europa" desde a Segunda Guerra Mundial, como disse o primeiro-ministro da Bélgica?
Snyder - Certamente há muitas coisas terríveis que aconteceram a muitos povos da Europa desde 1945. E muitas destas coisas terríveis aconteceram dentro da União Soviética: deportações em massa para o Gulag, por exemplo, ou deportações de grupos nacionais inteiros. Todas estas coisas aconteceram na União Soviética após a Segunda Guerra Mundial.
E, claro, a invasão da Hungria em 1956, e a invasão da Tchecoslováquia em 1968, também pela União Soviética, são bastante sombrias. Quero lembrar que tudo isso também é Europa.
Dito isto, acredito que este é o maior desafio para a Europa como um todo desde a Segunda Guerra Mundial.
BBC News Mundo - Por quê?
Snyder - Primeiro, não houve uma tentativa tão cínica de abusar da linguagem da ética europeia e do passado europeu, acho que nunca.
A noção de invadir um país com um presidente judeu democraticamente eleito e chamar de "desnazificação" é um ataque direto à maneira como tentamos usar o passado para guiar nossa ética política.
E sabemos que a Rússia, sob a atual liderança de Putin, não visa apenas a Ucrânia. Sabemos que a Ucrânia é o seu ponto mais sensível, mas que tem precisamente em mente minar a democracia e o Estado de direito por todos os lados.
BBC News Mundo - Neste sentido, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, falou de "uma disputa entre democracia e autocracia". Você concorda?
Snyder - Acho que é uma maneira muito boa de colocar isso, especificamente porque a preocupação declarada e explícita de Putin é derrubar um governo democraticamente eleito e instalar um governo autoritário sob seu domínio.
Biden disse de forma diferente, Putin disse do ângulo oposto.
BBC News Mundo - Então, este conflito poderia definir novas linhas para a democracia na Europa?
Snyder - Acho que sim, de uma forma positiva.
Os ucranianos são os únicos que morreram pela Europa no sentido da União Europeia: isso aconteceu em 2014, as únicas pessoas que morreram carregando a bandeira da União Europeia, durante os protestos de Maidan na Ucrânia.
Agora ucranianos, soldados e civis, estão morrendo em uma guerra que visa diretamente a Europa.
O peso moral disso é algo que espero que outras pessoas apreciem e assimilem com o tempo.
Também gostaria de pensar que este momento em que algumas velhas divergências entre países ocidentais e mesmo dentro de países foram superadas, pelo menos temporariamente, é um momento que as pessoas lembrarão como um momento de cooperação e solidariedade.
Um momento em que lembramos o valor da democracia em si, que é melhor viver em um país livre e que países livres podem realmente perceber o quão importante é viver em um país livre e fazer algo a respeito.
Acho que é uma maneira justa de caracterizar a cooperação das democracias ocidentais atualmente.
BBC News Mundo - Muitos se perguntam sobre as motivações de Putin. A história oferece alguma pista para responder?
Snyder - O problema é que quanto mais próximo você chegar de um regime tirânico perfeito, mais imprevisível ele será, já que depende mais de uma única pessoa. Platão escreve sobre isso em A República e também foi tema de Shakespeare.
Aqui temos um homem que envelhece agarrado ao poder e que está isolado há dois anos devido à covid. E olhando para seus escritos, parece que ele está muito menos preocupado com os interesses russos, estratégia ou algo assim, e muito mais interessado em sua reputação histórica, em que tipo de marca ele deixará e em ser lembrado como um grande líder russo.
Esses tipos de considerações são essencialmente imponderáveis para o resto de nós.
BBC News Mundo - Você diria, como Biden, que Putin quer "restabelecer a antiga União Soviética"?
Snyder - Acho que todas estas comparações são verdadeiras e falsas.
O que acontece com Putin é que ele meio que mistura os momentos do passado, ele pega o que gosta do período medieval, do Império Russo e da União Soviética, junta tudo e chama de Rússia.
Acho que ele gostaria de controlar o mesmo território que a União Soviética controlava. Mas ele também gostaria de imaginar que é o chefe de um império. E, ao mesmo tempo, ele gostaria de imaginar que a Rússia que ele governa remonta a 1.000 anos, o que, claro, é muita tolice.
Portanto, não discordo do que o presidente Biden disse. Só não acho que a mente de Putin esteja limitada apenas à União Soviética. Acho que também tem outros tipos de fantasias e modelos históricos.
BBC News Mundo - Você vê o Ocidente reagindo suficientemente unido, dadas as circunstâncias?
Snyder - Acho que, independentemente do que façamos, temos que pensar primeiro nos ucranianos. Independentemente das sanções que anunciamos, devemos também anunciar o que estamos fazendo pelos ucranianos: os refugiados, os deslocados internamente, o Estado ucraniano, seu Exército.
Acho impressionante como o Ocidente tem sido unido. Se temos uma fraqueza é que tendemos a focar a conversa apenas no que estamos fazendo sobre o regime de Putin e não pensamos de forma criativa o suficiente nas maneiras pelas quais poderíamos ajudar os ucranianos.
Porque agora eles estão sofrendo, mas também é muito importante como eles vão se lembrar disso.
BBC News Mundo - O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse que eles estão "sozinhos" e que "as forças mais poderosas do mundo estão observando de longe". Como você vê isso?
Snyder - Em primeiro lugar, quero destacar a coragem pessoal de Volodymyr Zelensky.
Na minha opinião, ele pode dizer o que quiser sobre os líderes distantes, porque ele está bem ali em Kiev e sabe que é o alvo desta guerra. É muito possível que ele seja capturado e morto. E ainda está lá. Então ganhou o direito de fazer essas críticas.
Acho que o que ele diz é natural. Sempre que você se encontrar nesta situação, você vai se sentir sozinho. Se você é um país pequeno invadido por um país grande, se você é um país com um exército pequeno invadido por um país com um exército enorme e não tem aliados militares vindo para ajudá-lo, é claro que você se sentirá sozinho. Acho que isso é normal.
BBC News Mundo - Você já respondeu à forma como Putin justificou suas ações dizendo que é necessário "desnazificar" a Ucrânia. Mas ele também negou a condição de Estado da Ucrânia e alegou que os residentes de língua russa na região de Donbas, no leste da Ucrânia, estão sendo submetidos ao genocídio, sem fornecer nenhuma evidência disso. Como você interpreta estas palavras, que também lembram a retórica da Segunda Guerra Mundial?
Snyder - Estes são os temas de 1938 e 1939.
Quando nos lembramos de Hitler, tendemos a recordar a própria guerra e o Holocausto, que é muito importante. E Putin profanou esse vocabulário.
Mas em 1938 e 1939, na também muito importante preparação para a guerra, Hitler deu o seguinte argumento: um estado democrático vizinho é uma criação artificial, não tem o direito de existir. A mesma coisa que Putin diz sobre a Ucrânia, Hitler disse sobre a Tchecoslováquia.
Hitler usou o argumento, novamente totalmente fictício, de que seus compatriotas no exterior estavam sofrendo terrivelmente e precisavam ser resgatados. De maneira muito semelhante, Putin fala de sofrimentos fictícios de russófonos em Donbas.
Ambos fazem um gesto falso em direção à diplomacia e depois invadem.
Então é surpreendente como o padrão se repete, a ponto de quase parecer plágio.
BBC News Mundo - Muito antes desta crise, Putin disse que a Rússia e a Ucrânia são "um só povo". Existe alguma verdade nisso em termos históricos?
Snyder - Posso falar da história, mas o principal é perguntar aos ucranianos. Pesquisas foram feitas, e a grande maioria dos ucranianos diz que a Ucrânia é uma nação separada da Rússia.
O mais importante é o que o próprio povo pensa. Porque mesmo que Putin tenha uma interpretação histórica terrível e eu tenha uma decente, nem sequer isso é mais importante do que o que o povo pensa de si mesmo.
Como historiador, posso dizer que as nações são formadas de forma complexa, conectadas com outras nações, isso é normal. O surgimento da nação austríaca, belga ou até mesmo italiana é complicado, assim como a história das nações escandinavas, todas ligadas entre si, mas que, por fim, resultaram em sociedades diferentes.
A Ucrânia e a Rússia estão conectadas, assim como a Ucrânia e a Polônia, ou a Ucrânia e a Lituânia e Belarus estão conectadas historicamente.
Há todos os tipos de vínculos desde a Idade Média até o presente, mas também todos os tipos de diferenças entre a Ucrânia e a Rússia.
Territorialmente, a Rússia é um país enorme, majoritariamente asiático, algo que a Ucrânia não é. A Ucrânia teve uma conexão com todas as grandes tendências europeias, como o Renascimento e a Reforma, algo que a Rússia não teve.
No século 17, já se falava de uma espécie de nação ucraniana, coisa que não aconteceu na Rússia. Houve um movimento nacional ucraniano no século 19; e não houve nada semelhante na Rússia.
Mas o mais importante é como o povo imagina seu futuro. Uma nação parece se tratar do passado, mas na verdade é sobre o futuro: como um coletivo de pessoas vê o que farão juntas. E, neste sentido, está absolutamente claro que a Ucrânia é uma nação separada.
BBC News Mundo - Você vê aqui um risco de escalada até a beira de uma nova Guerra Mundial?
Snyder - Claro, quero dizer, historicamente falando, todos se sentem mais cômodos com a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, mas isso parece um pouco mais com o início da Primeira Guerra Mundial. Pode-se pensar que a Rússia é como a Sérvia, fazendo uma apropriação de terras que afeta a ordem circundante. Ou você pode mudar a analogia e pensar que a Rússia é como a Áustria, e a China como a Alemanha, e que a Rússia está atraindo uma potência maior para um conflito mundial.
Acho que, portanto, existe um risco de escalada. Tem que haver esse risco: cada vez que uma grande guerra é iniciada no meio da Europa, se arrisca algo. E a responsabilidade desse risco recai sobre os ombros de um homem: Vladimir Putin.
Mas, ao mesmo tempo, fiquei impressionado com a maneira como os americanos foram tão moderados em sua resposta.
Acho que o governo Biden, de maneira única entre os presidentes americanos nos últimos 30 anos, reconheceu que podemos fazer algumas coisas, mas não podemos fazer tudo. E pensou de antemão sobre as coisas que não vai fazer porque são muito arriscadas.
Essa reflexão do governo Biden é algo que me faz sentir melhor sobre os riscos de escalada.
BBC News Mundo - Claro que uma grande diferença, sobretudo em relação à Primeira Guerra Mundial, são as armas nucleares, por isso o risco é ainda maior para todo o planeta, certo?
Snyder - Não quero minimizar as dezenas de milhões de mortes das duas guerras mundiais, mas é claro que isso é verdade.
Ao mesmo tempo, isso não significa que todos os países que possuem armas nucleares possam dizer aos demais o que fazer só por causa de suas armas nucleares. Esse tampouco seria um mundo tolerável.
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