Guerra na Ucrânia: o histórico 'contra-ataque' dos EUA e aliados ocidentais contra o 'agitador' Putin
Vários presidentes americanos fracassaram na tentativa de lidar com o presidente russo, mas a reação europeia à invasão da Ucrânia fortaleceu o Ocidente.
Sucessivos presidentes dos Estados Unidos tentaram, com dificuldade, aprender como lidar com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Agora, porém, quando a União Europeia e a Alemanha uniram-se a esse esforço, a realidade é outra.
O presidente russo chegou ao poder em 31 de dezembro de 1999. Nos 20 anos que se passaram desde então, Putin tem tentado minar a ordem liberal internacional.
O ex-espião da KGB quer reviver a grandeza russa czarista e restaurar o poderio e a ameaça da União Soviética antes de sua dissolução, em 1991.
Ele buscou - às vezes, com sucesso - redesenhar o mapa da Europa. Ele tentou - às vezes, com sucesso - imobilizar as Nações Unidas. Ele tem estado determinado - às vezes, com sucesso - a enfraquecer os EUA e promover sua divisão e seu declínio.
Fim da História?
Putin chegou ao poder numa época de arrogância ocidental. Os EUA eram a única superpotência num mundo unipolar.
A tese de intelectual americano Francis Fukuyama, falando do "fim da História" e proclamando o triunfo da democracia liberal, era amplamente aceita.
Alguns economistas até mesmo venderam a teoria de que o mundo não veria mais recessões, parcialmente graças aos ganhos de produtividade proporcionados pela nova economia digital.
Também se pensou que a globalização e a interdependência que ela criou evitariam que grandes potências econômicas travassem guerras, e a internet era amplamente vista como uma força para o bem global.
Especialmente no início, os mesmos otimismo e ilusão equivocados coloriram a forma como o Ocidente via Putin.
Sucessivos presidentes americanos deixaram-se levar. Bill Clinton, o ocupante da Casa Branca quando Putin ascendeu ao poder, deu de bandeja a esse ultranacionalista um popular ressentimento, ao promover a expansão da aliança militar Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) até a fronteira da Rússia.
Como George F. Kennan, o famoso arquiteto da estratégia dos EUA na Guerra Fria, alertou na época: "Expandir a Otan será o mais fatídico erro da política americana em toda a era pós-Guerra Fria".
George W. Bush errou completamente em sua leitura do colega russo. "Eu olhei nos olhos daquele homem", Bush disse depois de seu primeiro encontro com ele, em Eslovênia, em 2001. "Eu o achei bastante direto e confiável… Eu fui capaz de ter uma ideia sobre sua alma."
Bush cometeu o erro de pensar que ele poderia seduzir Putin e gentilmente persuadi-lo a seguir o caminho democrático.
No entanto, embora Bush tenha visitado a Rússia mais que qualquer outro país - incluindo, como um favor pessoal, duas viagens em 2002 à cidade-natal de Putin, São Petersburgo -, o líder russo já exibia tendências perigosas.
Em 2008, ultimo ano de Bush como presidente, Putin invadiu a Geórgia - o que ele chamou de "operação para garantir o cumprimento da paz".
O Kremlin argumentou na época - e tem argumentado desde então - que era hipocrisia de Washington reclamar dessa violação do direito internacional depois que Bush invadira o Iraque.
Barack Obama tentou reestruturar as relações entre EUA e Rússia. Sua primeira secretária de Estado, Hillary Clinton, até entregou a seu colega russo, Sergey Lavrov, um botão de reinício (reset) de brinquedo.
Mas Putin sabia que os EUA, após suas longas guerras no Afeganistão e no Iraque, não queriam mais policiar o mundo.
Quando Obama recusou-se, em 2013, a cumprir seu alerta anterior contra Bashar al-Assad, quando o ditador sírio usou armas químicas contra seu próprio povo, Putin viu uma oportunidade.
Ao ajudar Assad a travar sua guerra assassina, ele estendeu a esfera de influência de Moscou no Oriente Médio quando os EUA queriam sair da região.
No ano seguinte, ele anexou a Crimeia e estabeleceu uma presença no leste da Ucrânia.
Apesar de ter ouvido de Obama que deveria "parar com isso", Putin até tentou influenciar o resultado da eleição presidencial de 2016, na esperança de que Hillary Clinton, sua inimiga de longa data, fosse derrotada, e Donald Trump, seu fã havia tempos, vencesse.
O magnata não escondia sua admiração por Putin, uma bajulação que parece ter encorajado o presidente russo ainda mais.
Para o deleite de Moscou, Trump criticou a Otan publicamente, enfraqueceu o sistema de alianças dos EUA do pós-guerra e tornou-se uma figura tão polarizadora que deixou os EUA mais divididos politicamente do que em qualquer momento desde a Guerra Civil (1861-1865).
É possível dizer que precisamos voltar 30 anos para encontrar um líder americano cuja postura diante do Kremlin resistiu ao tempo.
Depois da queda do Muro de Berlim, George H.W. Bush resistiu à tentação de festejar a vitória dos EUA na Guerra Fria — para o espanto dos jornalistas que cobriam a Casa Branca, ele se recusou a viajar para Berlim como forma de comemorar vitória —, sabendo que isso fortaleceria radicais no Politburo e um Exército russo que buscava a derrubada de Mikhail Gorbachev.
Aquela vitória magnânima ajudou quando veio a missão de reunificar a Alemanha, o que foi provavelmente o maior sucesso de Bush em política externa.
Putin é obviamente um adversário mais difícil, até mesmo mais duro de se lidar do que Leonid Brezhnev ou Nikita Khrushchev, o premiê soviético durante a crise dos mísseis em Cuba.
Desde a virada do século, porém, nenhum presidente americano realmente soube como lidar com Putin. Joe Biden, como George H.W. Bush, é um combatente da Guerra Fria que dedicou sua presidência à defesa da democracia, nos EUA e no exterior.
Ao buscar o restabelecimento do papel tradicional dos EUA do pós-guerra como líder do mundo livre, ele buscou mobilizar a comunidade internacional, ofereceu ajuda militar à Ucrânia e adotou o mais duro regime de sanções até hoje direcionado contra Putin.
Conforme as forças russas concentravam-se na fronteira com a Ucrânia, Biden também compartilhou informações da inteligência americana mostrando que Putin havia decidido invadir o vizinho, em maneiras que buscaram abalar as costumeiras campanhas de desinformação e operações de bandeira falsa do Kremlin.
Seu discurso sobre o Estado da União tornou-se uma convocação. "A liberdade sempre triunfará sobre a tirania", disse. Apesar de Biden não discursar com a clareza ou força de John Kennedy (1961-63) ou Ronald Reagan (1981-89), foi entretanto um discurso significativo.
O que tem sido chocante desde o início da invasão russa, entretanto, é uma liderança presidencial contundente vinda de outro lugar.
Volodymyr Zelensky tem sido louvado e celebrado, conforme ele continua sua extraordinária jornada pessoal de comediante para colosso churchilliano.
O papel da Alemanha
Em Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tem sido outra presença imponente.
Essa ex-política alemã tem sido uma força por trás da decisão, pela primeira vez na história da União Europeia, de financiar e comprar armamentos para uma nação sob ataque, um compromisso que inclui não apenas munição, mas também aviões de combate.
Seu compatriota, o chanceler alemão, Olaf Scholz, também demonstrou mais determinação na sua relação com Putin que sua antecessora, Angela Merkel.
Em alta velocidade, ele alterou décadas de política externa alemã pós-Guerra Fria, uma abordagem frequentemente baseada em cautela e timidez nas relações com o líder russo.
Berlim enviou sistemas antitanques e antiaéreos para a Ucrânia (encerrando a política de não enviar armamentos para zonas ativas de guerra), paralisou o projeto de gasodutos do Mar Báltico Nord Stream 2, retirou sua oposição ao bloqueio da Rússia do sistema internacional de pagamentos Swift e até mesmo comprometeu-se com um gasto de 2% do Produto Interno Bruto alemão com a área da defesa.
O maior ataque contra um Estado europeu desde a Segunda Guerra Mundial endureceu a determinação europeia. Mas também parece que a relativa fraqueza dos EUA tenha contribuído para isso.
Cientes da atabalhoada retirada dos EUA do Afeganistão e da possibilidade de uma presidência Trump 2.0, líderes europeus parecem ter percebido que não podem mais depender tanto de Washington para defender a democracia neste momento de perigo máximo.
A liderança do mundo livre tornou-se, nesta crise, um esforço comum.
Após o fim da Guerra Fria, Washington pediu às nações europeias que fizessem mais para policiar sua própria vizinhança, algo que eles não conseguiram fazer quando o desmembramento da ex-Iugoslávia levou à guerra civil na Bósnia.
Historiadores podem muito bem concluir que foi preciso uma combinação da agressividade de Putin, a fragilidade americana, a heroica determinação da Ucrânia e o medo de que a estabilidade pós-guerra da Europa esteja verdadeiramente ameaçada para que isso finalmente acontecesse.
Seria ingênuo ser levado pelo romantismo dos discursos de Zelensky ou sucumbir a uma elevação de dopamina ao vermos a tomada de um superiate de propriedade russa nas redes sociais. Putin está intensificando a guerra.
A semana passada, porém, enviou uma mensagem a Moscou - e também a Pequim - de que a ordem internacional pós-guerra continua a funcionar, apesar do emprego da máquina de guerra russa para levá-la ao colapso.
Da mesma forma que a história nunca acabou, também não acabou a democracia liberal.
Como Joe Biden disse em seu discurso sobre o Estado da União, durante uma passagem em que a retórica também serviu como uma sóbria análise: Putin "pensou que ele podia entrar, e o mundo ficaria deitado. Em vez disso, ele encontrou um muro de resistência que ele nunca havia imaginado".
* Nick Bryant é autor do livro When America Stopped Being Great: a history of the present (Quando a América Parou de Ser Grande: uma história do presente). Ele é ex-correspondente da BBC em Nova York (EUA) e vive hoje em Sydney (Austrália).
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