Hidroxicloroquina funciona no tratamento da covid-19?
Especialistas retomam testes clínicos para o medicamento recomendado por Trump e Bolsonaro em meio a debate sobre sua eficácia
Especialistas estão retomando os testes clínicos com a agora célebre hidroxicloroquina para a covid-19, enquanto a confusão continua a reinar sobre o debate em torno do medicamento para tratamento da malária incentivado pelo presidente Jair Bolsonaro e celebrado pelo presidente norte-americano, Donald Trump, como um potencial "divisor de águas" na luta contra a pandemia.
As novas pesquisas seguem após críticas generalizadas sobre a qualidade dos dados em um estudo que retirado na quinta-feira. O artigo, originalmente publicado na influente publicação científica The Lancet, havia descoberto riscos altos associados ao tratamento com o remédio.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), que na semana passada suspendeu os testes após o estudo da The Lancet mostrar que o medicamento estava associado com um risco maior de morte em pacientes hospitalizados, anunciou na quarta-feira que estava pronta para retomar os testes.
A mudança de postura da OMS é "uma decisão sábia", de acordo com Martin Landray, cientista que co-lidera o estudo Recovery, maior projeto de pesquisa do mundo sobre medicamentos existentes que podem ser aproveitados para o tratamento de pacientes com a covid-19.
"O que esse episódio realmente mostra é que sem testes randomizados, há uma imensa incerteza", disse Landray, que é professor de Medicina e Epidemiologia da Universidade de Oxford.
Estudos aleatórios são o padrão de ouro nas pesquisas científicas, e consistem em atribuir um tratamento a um grupo de pessoas e um placebo a um outro para que os dois possam ser comparados.
O estudo da The Lancet era um estudo "observacional retrospectivo", utilizando um conjunto de dados vindos de uma empresa de análises para avaliar os efeitos que a substância tinha em alguns pacientes da covid-19, comparados com pacientes que não a receberam.
A meia-volta da OMS se deu após quase 150 médicos assinarem uma carta à Lancet ressaltando preocupações sobre as conclusões do estudo. Na quinta-feira, três dos autores retiraram o estudo, dizendo que a empresa que detêm os dados não o publicaria para uma revisão independente.
Alguns especialistas disseram que o episódio atrasou os esforços para determinar se a hidroxicloroquina seria um tratamento arriscado ou eficiente para a covid-19, conforme alguns estudos por todo o mundo foram suspensos após a decisão inicial da OMS de parar as pesquisas.
"Impactou de verdade negativamente os tipos de estudos que poderiam dizer se há benefícios ou danos", disse Will Schilling, co-diretor do estudo britânico Copcov, à Reuters. O estudo foi suspenso na semana passada, apenas alguns dias após seu lançamento.
"No momento, nós realmente não sabemos", disse Schilling. "É por isso que esses estudos são necessários, e agora eles estão levemente abalados por tudo isso."
Cientistas reconhecem, no entanto, que estudos que estão sendo conduzidos em ritmos acelerados e angariando níveis de atenção sem precedentes podem oferecer conclusões despropositadas.
Trump está tomando
A hidroxicloroquina ocupou as manchetes de todo o mundo muito por conta da propaganda feita por Trump, que disse em março que o medicamento poderia ser um divisor de águas e revelou no mês passado que estaria tomando por conta própria, mesmo após a Administração de Alimentos e Medicamentos dos EUA (FDA) aconselhar que sua eficácia e segurança não foram provadas.
Na ausência de evidências científicas claras, algumas autoridades e consumidores estão comprando estoques do medicamento caso ele se mostre eficiente. O Reino Unido, por exemplo, está investindo milhões de libras em grandes quantidades de cartelas.
Experimentos laboratoriais mostraram que a hidroxicloroquina podia bloquear o vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19, mas o efeito não foi replicado em testes mais rigorosos em pessoas.
Um outro estudo feito por especialistas da Universidade de Minnesota sobre o potencial efeito preventivo da hidroxicloroquina contra o novo coronavírus concluiu que o medicamento não protegeu os pacientes que a receberam antes de serem expostos à covid-19.
Aqui novamente, no entanto, as águas ficaram turvas. O New England Journal of Medicine, que publicou o estudo na quarta-feira, apontou em um editorial que há limites no escopo do estudo.
O estudo da Universidade de Minessota também foi limitado no cenário testado, afirmou Richard Chaisson, pesquisador da Universidade Johns Hopkins que está conduzindo um teste separado do medicamento para determinar se ele é eficiente para o tratamento de pacientes com versões de moderadas a severas da covid-19.
Há ainda uma necessidade para estudos robustos sobre se a substância pode funcionar em doses baixas antes ou depois da exposição ao vírus, assim como em casos leves, moderados, pacientes hospitalizados e gravemente adoecidos, acrescentou.