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'Invasão da Ucrânia pela Rússia é tão irracional que vai além da Guerra Fria', diz historiador

Americano James Hershberg, especialista no tema e autor de vários livros sobre corrida nuclear, adverte que conflito atual pode ser mais perigoso do que o do passado.

13 mar 2022 - 12h40
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Historiador James Hershberg é especialista em assuntos relacionados à Guerra Fria
Historiador James Hershberg é especialista em assuntos relacionados à Guerra Fria
Foto: James Hershberg / BBC News Brasil

O historiador americano James Hershberg observa várias semelhanças entre a Guerra Fria (1947-1989) e o que ocorre atualmente na invasão russa na Ucrânia. Mas também enxerga diferenças importantes.

Por isso, o professor de História e Relações Internacionais da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, alerta que o conflito atual pode ser mais perigoso que o do passado.

"A ação do (presidente russo Vladimir) Putin é tão irracional e sua ameaça nuclear é tão provocativa que vai além do que aconteceu durante a Guerra Fria", diz Hershberg, que também é autor de várias publicações sobre a corrida armamentista nuclear.

Na entrevista a seguir, ele explica por que, "de certa forma, estamos em meio a uma segunda crise dos mísseis de Cuba", em alusão ao evento de 1962, o mais tenso da Guerra Fria, em que Estados Unidos e Rússia quase iniciaram uma guerra nuclear.

BBC News Mundo - Estamos assistindo ao início de uma nova Guerra Fria?

James Hershberg - Claramente em alguns aspectos. Há importantes semelhanças, mas também há diferenças entre o que está começando e a antiga Guerra Fria.

Sobre as semelhanças, não há dúvidas de que a agressividade de Putin e da Rússia ao invadir a Ucrânia está estimulando uma reação do restante do mundo, em especial do Ocidente. Ou seja, da Europa e da América do Norte, muito comparável ao que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial em resposta à agressividade soviética no Leste Europeu e no Oriente Médio.

Isso, combinado com o bloqueio de Berlin por Stalin (Joseph Stalin, ex-líder russo), foi o que estimulou a criação da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental) em 1949. E como escrevi no artigo na revista Foreign Affairs, a ação de Putin está criando uma Otan mais forte, mais unificada e provavelmente maior que se aproximará de suas fronteiras.

Agora, uma diferença importante da Guerra Fria é que a União Soviética após a Segunda Guerra Mundial supostamente adotou uma ideologia do marxismo, leninismo, socialismo e comunismo, enquanto Putin defende nada além do poder russo. Portanto, não há apelo nas ideias que a Rússia representa além da própria Rússia.

E, claro, também existem outras diferenças (entre o conflito do passado e o atual).

BBC News Mundo - Alguns estudiosos argumentam que o novo enfrentamento entre Moscou e o Ocidente pode ser ainda mais perigoso e imprevisível que a Guerra Fria. Isso é possível?

Hershberg - É muito possível. Putin está fazendo até com que (o ex-líder soviético) Nikita Khrushchev pareça relativamente estável e racional quando comparado a ele. A ação de Putin é tão irracional e sua ameaça nuclear é tão provocativa que vai além do que aconteceu durante a Guerra Fria.

Além disso, a tecnologia oferece mais oportunidades de ação internacional e até global ao alcance de Moscou, sobretudo por meio da internet.

Até Stalin foi relativamente cauteloso. Ele cometeu erros como autorizar o bloqueio de Berlim (quando os soviéticos impediram o envio de suprimentos à cidade, que se localizava na parte da Alemanha dominada pela URSS, antes da construção do muro, entre 1948 e 1949) ou autorizar que a Coreia do Norte atacasse a Coreia do Sul, mas tomou muito cuidado para não provocar uma guerra com o Ocidente, em especial com os Estados Unidos, que têm uma inegável superioridade nuclear.

Não está claro o quanto Putin ficará desesperado. Porque ele não vai admitir a derrota, que seria uma completa humilhação para ele, por isso é muito possível que ele possa intensificar (o conflito).

Vladimir Putin repete velhos erros da União Soviética, afirma Hershberg
Vladimir Putin repete velhos erros da União Soviética, afirma Hershberg
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - O Sr. é um especialista na crise dos mísseis de Cuba (quando mísseis nucleares foram colocados na ilha pela União Soviética por temor de uma invasão americana). E acabou de mencionar Khrushchev. O Sr. acredita que as tensões entre Washington e Moscou atualmente estão em seu nível mais alto desde aquela época, em 1962?

Hershberg - Sim. Quero dizer, estamos em meio a uma segunda crise de mísseis de Cuba, de certa forma.

Agora, uma coisa importante é que Joe Biden (presidente dos Estados Unidos) e a Otan deixaram muito claro que não vão participar diretamente de ações militares na Ucrânia.

Mas também está claro que eles vão fornecer e estão fornecendo armas ao governo legítimo da Ucrânia.

Se Putin ficar desesperado e fracassar em uma guerra prolongada, ninguém pode dizer se ele usará a força, por exemplo, ao longo da fronteira entre a Ucrânia e países da Otan, como Polônia e Romênia, por onde as armas podem ser infiltradas.

Sobre 1962, embora Khrushchev tenha cometido um erro claro de provocação ao enviar armas nucleares a Cuba, ele agiu de forma mais ou menos coerente, quando as armas foram descobertas, para tentar reduzir os riscos e evitar uma guerra nuclear, embora o perigo de uma escalada acidental para uma guerra nuclear tenha existido na crise dos mísseis.

BBC News Mundo - Do ponto de vista da Rússia, a expansão da Otan para o Leste Europeu após o fim da Guerra Fria prejudicou a relação de Moscou com o Ocidente. Isso poderia ser evitado?

Hershberg - É difícil dizer. Curiosamente, no começo dos anos 2000, logo após se tornar líder da Rússia, substituindo Boris Yeltsin, Putin fez uma série de comentários nos quais aceitava a expansão da Otan como legítima. Ele até disse que caberia à Ucrânia decidir se queria se juntar à Otan.

É difícil fazer um julgamento completamente negativo, porque a Hungria e a antiga Tchecoslováquia haviam sido invadidas pela União Soviética. A Polônia havia sido ameaçada de invasão e a União Soviética pressionou o governo comunista em Varsóvia para suprimir o movimento sindical Solidariedade em 1981.

E os países bálticos foram incorporados à força na União Soviética em 1940, após o pacto Hitler-Stalin.

Os russos têm razão quando dizem que George H.W. Bush prometeu a Mikhail Gorbachev em 1990 que a Otan não se expandiria para o Leste. Mas também é correto afirmar que os países que pediram para entrar na Otan tinham razões históricas para que se sentissem ameaçados por terem a Rússia como vizinha.

Então, era uma escolha difícil em qualquer direção. Você provoca a Rússia ou nega proteção aos países que foram vítimas de Moscou durante os tempos soviéticos? Trata-se de um dilema difícil.

Ex-dirigente soviético Nikita Khrushchev poderia parecer "ator racional" comparado a Putin, avalia Hershberg
Ex-dirigente soviético Nikita Khrushchev poderia parecer "ator racional" comparado a Putin, avalia Hershberg
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Em seu artigo na revista Foreign Affairs, o Sr. argumenta que Putin agora repete os erros soviéticos. Por quê?

Hershberg - Não está claro. Menciono Putin dizendo que em 2000 admitiu que a invasão soviética da Hungria em 1956 e da Tchecoslováquia em 1968 foram erros graves que contribuíram para o crescimento da "russofobia" no Leste da Europa.

E ele tem de estar ciente de que sua ação contra a Ucrânia vai aprofundar a "russofobia" em todo o Leste da Europa, assim como na periferia russa.

Por isso há quem suspeite que o verdadeiro objetivo de Putin poderia não ter tanto a ver com a Otan, mas com a Ucrânia voltando sua orientação social, cultural e econômica para o Oeste, para a Europa, e se afastando da Rússia desde 2014 com a Revolução de Maidan; Putin, por seu legado, queria envolver a Ucrânia como parte do Império Russo.

Não está claro quanto o seu motivo é defensivo e quanto agressivo, querendo que o retorno do Império Russo, incorporando Belarus, a Ucrânia e possivelmente mais países.

É nesse ponto que a coisa se torna muito perigosa, porque há minorias russas em muitos dos países que faziam parte da União Soviética, que agora são países independentes que cercam a Rússia, não apenas nos países bálticos, mas também Ásia Central, Moldávia e Cáucaso.

Rússia
Rússia
Foto: AFP / BBC News Brasil

BBC News Mundo - O Sr. também mencionou momentos da Guerra Fria que considera que foram erros soviéticos, como a invasão da Coreia do Sul pela Coreia do Norte, levando o Ocidente a aceitar que a Alemanha Ocidental se armasse. Ou a invasão da Hungria em 1956, que "lembrou à aliança (Otan) por que ela existia". Ou a guerra no Afeganistão, que enfraqueceu a União Soviética. O Sr. vê resultados semelhantes agora?

Hershberg - É muito cedo para prever resultados semelhantes. Mas há algumas dinâmicas comparáveis, porque a invasão da Ucrânia fortaleceu a Otan quando ela estava muito enfraquecida após o seu fracasso no Afeganistão e o impacto da presidência de quatro anos de Donald Trump nos Estados Unidos, que odiava a Otan.

Putin tornou a Otan muito mais eficaz em suas ações e provavelmente fará com que ela cresça, já que pelo menos um ou mais países neutros desde o fim da Segunda Guerra Mundial agora podem se sentir suficientemente ameaçados a ponto de ingressar na Otan. A Finlândia é o exemplo mais importante disso.

De muitas maneiras, isso seria uma represália perfeita para demonstrar à Rússia o quanto a ação de Putin foi contraproducente.

Quanto ao Afeganistão, se essa guerra se transformar em uma ocupação russa da Ucrânia, certamente haverá uma insurgência ucraniana que pode durar anos.

E assim como a maior operação da história da CIA (agência de inteligência dos EUA) foi enviar armas e infiltrar combatentes mujahideen no Afeganistão, com a ajuda de outros países, essa poderia ser a dinâmica da infiltração de combatentes e armas pelos países da Otan que fazem fronteira com a Ucrânia, como Polônia e Romênia.

O incrível espírito de resistência que os ucranianos estão demonstrando indica que a missão russa de derrotar a Ucrânia militarmente é extremamente difícil.

BBC Mundo - A Guerra Fria certamente foi muito intensa em lugares como a América Latina, onde houve confrontos armados entre forças apoiadas por ambos os lados…

Hershberg - Essa é uma diferença interessante, porque Putin não defende nada além do poder da Rússia, enquanto durante a Guerra Fria, a União Soviética, e depois a República Popular da China de Mao Tse Tung, apoiaram a causa da revolução, enviaram armas aos movimentos anti-imperialistas e anticolonialistas na África, Ásia e, mesmo que em um grau limitado, tentaram fazer isso na América Latina.

Não vai haver movimentos pró-Putin ou pró-russos que busquem o poder em nenhum outro lugar do mundo. Pode haver algumas circunstâncias limitadas como na Coreia do Norte ou no Irã, onde a Rússia tem um relacionamento baseado em realidades de poder, mas não há dimensão ideológica nisso.

Portanto, não vejo a dinâmica da Guerra Fria surgindo agora em conflitos menores em diferentes continentes, como nos quais Estados Unidos e a União Soviética apoiavam lados opostos.

Rússia
Rússia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC Mundo - Qual será o papel da China em tudo isso?

Hershberg - Essa é uma pergunta muito interessante porque a China está tentando um equilíbrio: não quer apoiar abertamente a invasão e enfrentar os países da Europa e da América do Norte a ponto de colocar em perigo seu comércio com eles, mas também não está disposta a se opor diretamente à invasão de Putin ou a apoiar as sanções contra a Rússia (que têm sido aplicadas por diversos países).

Então, eles tentam ficar dos dois lados. Mas, de certa forma, e isso é mais especulativo, muitas pessoas suspeitam que se Putin for capaz de invadir e tomar a Ucrânia, isso poderia de alguma maneira animar o (presidente chinês) Xi Jinping e os chineses a invadir e finalmente tomar Taiwan.

Mas, inversamente, a ferocidade da resistência ucraniana e a intensidade das sanções contra a Rússia pelo restante do mundo podem ter um efeito desestimulante em Pequim.

Se os chineses estavam pensando seriamente em usar a força para tentar conquistar ou reconquistar Taiwan, creio que agora é menos provável que façam isso porque estão vendo como a aventura de Putin se tornou custosa.

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