Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, morre aos 80 anos
Diplomata ocupou 10 anos o mais alto cargo da ONU, denunciou a guerra no Iraque e chegou a receber o Prêmio Nobel da Paz
O ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, faleceu aos 80 anos, neste sábado, 18. A fundação que carrega seu nome anunciou sua morte, por meio de um comunicado, apenas indicando que ele teria sofrido uma doença súbita. Nascido em Gana em 1938, o africano, à frente da organização humanitária por 10 anos, chegou a receber o prêmio Nobel da Paz, em 2001.
Chefe da diplomacia das Nações Unidas entre 1997 e 2006, ele foi internado às pressas num hospital de Berna, na Suíça. Os detalhes sobre seu funeral ainda estão sendo organizados.
It is with immense sadness that the Annan family and the Kofi Annan Foundation announce that Kofi Annan, former Secretary General of the United Nations and Nobel Peace Laureate, passed away peacefully on Saturday 18th August after a short illness... pic.twitter.com/NDOy2NmAAs
— Kofi Annan Foundation (@KofiAnnanFdn) 18 de agosto de 2018
António Guterres, atual secretário-geral da ONU, emitiu um comunicado expressando sua "profunda tristeza". "De muitas formas, Annan era a ONU. Ele subiu dentro da organização para lidera-lá ao novo milênio, com dignidade e determinação", escreveu. O português insistiu que Annan foi seu mentor e indicou que, "em tempos turbulentos", ele nunca deixou de agir.
Kofi Annan was a guiding force for good. I join the world in mourning his loss. In these turbulent and trying times, his legacy as a global champion for peace will remain a true inspiration for us all. https://t.co/psJ9viPIeu pic.twitter.com/SKfBk5zaY2
— António Guterres (@antonioguterres) 18 de agosto de 2018
Annan mantinha uma estreita amizade com Sergio Vieira de Mello, o brasileiro que liderou a ONU por algumas das maiores crises humanitárias e que morreu há 15 anos em Bagdá.
Annan teve seu mandato, entre 1997 e 2006, marcado pela decisão de denunciar como "ilegal" a guerra de George W. Bush no Iraque. A partir de então, ele passou a ser alvo de ataques por parte da diplomacia americana.
Meses depois de tamanha declaração, Annan viu seu filho acusado de envolvimento em escândalos de corrupção. O africano ficou abalado com a ofensiva contra ele e sua família e, por meses, chegou a perder sua voz.
"Kofi Annan was a guiding force for good. It is with profound sadness that I learned of his passing. In many ways, Kofi Annan was the United Nations." @antonioguterres on passing of former SG @KofiAnnan @UN Full statement here https://t.co/TS3GNnXzvM
— UN Spokesperson (@UN_Spokesperson) 18 de agosto de 2018
Depressão
Desde que deixou a ONU, o africano se dedicou assiduamente a mediar conflitos, como o da Síria. Mas o roteiro do drama vivido pelo ganês Kofi Annan nos últimos anos de uma década no comando da diplomacia da ONU foi ainda de depressão.
Abalado pela decisão dos EUA de invadir o Iraque, seguida pela morte, em Bagdá, em 2003, do enviado especial e amigo pessoal Sérgio Vieira de Mello, e depois por denúncias de corrupção, Annan deu sinais de que abandonaria o cargo.
As revelações são de Fred Eckhart, que por oito anos foi o porta-voz de Annan na ONU e publicou o livro de memórias Kofi Annan sobre o primeiro africano a liderar o órgão.
Em entrevista ao Estado, Eckhart revelou como o secretário-geral da ONU entrou em rota de colisão com o governo americano por causa do Iraque. Annan tinha recebido aval da Casa Branca para comandar a organização em substituição ao egípcio Boutros-Boutros Ghali, cujo mandato à frente da ONU foi considerado "desastroso" por Washington.
Annan, porém, também acabou sendo alvo de ataques. "Quem enfrenta os EUA sabe que sofrerá retaliações e foi isso o que ocorreu", contou Eckhart. Com base em mais de cem entrevistas e na convivência diária com Annan, o ex-porta-voz aponta que o africano ficou preocupado com a divisão criada na comunidade internacional pela política unilateral imposta por George W. Bush.
"Annan viu a Carta da ONU ser rasgada na sua cara", disse ele em relação à decisão dos americanos de ignorar o Conselho de Segurança, adotar a estratégia de ataques preventivos e rever toda a questão da tortura.
Sua crise pessoal tornou-se ainda mais grave com o atentado contra a sede da ONU em Bagdá - o maior da história da organização -, em que o brasileiro Sérgio Vieira de Mello e outras 22 pessoas morreram.
No livro, Eckhart revela que o envio do amigo a Bagdá foi a pedido dos EUA. Annan teria tentado convencer a Casa Branca de que Vieira de Mello já estava "ocupado" demais no cargo de alto comissário da ONU para os Direitos Humanos.
"Vieira de Mello foi convidado diretamente pelos americanos que, com isso, torceram o braço de Annan", diz Eckhart. O acordo foi que o brasileiro ficaria apenas quatro meses em Bagdá. Para Annan, o dia do atentado à bomba - 19 de agosto de 2003 - foi o pior de seu mandato.
Dias depois, quando foi ao Rio de Janeiro para as homenagens ao brasileiro, Annan não queria jantar nem sair do quarto de hotel. "Muitas pessoas perto dele confirmam que ele ficou deprimido", disse o ex-assessor. Annan, naqueles meses, perdeu a voz e, nas reuniões, parecia ausente. "Ele foi consultar um médico para cuidar da garganta, mas também procurou ajuda para lidar com o estresse emocional", contou Eckhart.
Quando Annan finalmente alertou que a guerra do Iraque era ilegal, em uma entrevista à BBC, Eckhart disse ter advertido o secretário-geral de que ele teria problemas. "Ele retrucou: "É isso o que penso", disse Eckhart. O que se seguiu foi uma série de acusações de corrupção contra Annan, a maioria vinda de aliados conservadores do governo Bush.
Escândalo
Eckhart defende o ex-chefe no escândalo envolvendo o programa Petróleo por Alimentos, que tentava garantir que a população iraquiana continuasse a receber ajuda, apesar do embargo econômico imposto ao regime de Saddam Hussein. "Foi tudo um grande cinismo", disse.
Segundo ele, boa parte da imprensa norte-americana também partiu para o ataque contra o secretário-geral. "Nem Annan nem sua mulher, Nane, estavam preparados. Mas ele manteve uma posição digna", afirmou.
"Todos aqueles que o conheciam, porém, viam que ele estava nervoso. Por baixo da mesa de reunião, Annan não parava de mexer os pés e as pernas." Em dezembro de 2004, Annan foi convidado pelo embaixador americano Richard Holbrooke para uma reunião em seu apartamento, em Nova York.
O recado era claro: "Os EUA não pediriam sua cabeça e permitiriam que terminasse o mandato. No entanto, não moveriam uma palha para impedir sua queda." Alguns dias depois, em uma reunião privada, Annan foi vago ao ser questionado se iria renunciar. Um de seus assessores alertou que se fosse para sair, aquele era o momento. Annan levou semanas para avisar à imprensa que permaneceria no cargo.
A ONU passou a ser alvo de uma investigação que, meses depois, acabou identificando 2.200 empresas em 66 países que pagaram US$ 1,8 bilhão em propinas ao governo de Saddam Hussein para garantir acesso ao petróleo. A conclusão foi de que Annan, de fato, teve problemas para gerenciar o programa, mas o africano não foi indiciado por corrupção.
Seu filho, Kojo Annan, também foi suspeito de ter se beneficiado do esquema, mas quando o resultado da investigação foi divulgado, inocentando-o, era tarde demais: a imagem do secretário-geral estava arranhada.
No último dia de mandato, Annan recebeu em Nova York o novo secretário-geral da ONU, o coreano Ban Ki-moon. Em seu discurso, Ban elogiou a elegância do terno de Annan, mas prometeu "limpar" a ONU. Annan respondeu: "Quando você conseguir limpar a ONU, te dou o telefone do meu alfaiate." Questionado sobre como avaliaria Annan, o embaixador dos EUA na ONU, John Bolton, apenas respondeu: "Essa pergunta eu passo".
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