'Made in China?': os produtos endossados por Trump fabricados fora dos EUA
Revitalizar a indústria americana foi uma das principais promessas de campanha do agora presidente dos EUA, que tem lucrado com a venda de uma lista longa de produtos, que em alguns casos vêm de fora do país.
Em fevereiro de 2024, um dia depois de ter sido condenado por um juiz em Nova York a pagar US$ 355 milhões no caso de fraude contábil em que fora acusado de inflar ilegalmente o tamanho de seu patrimônio, Donald Trump lançou um par de tênis dourados com seu nome.
Vendido por US$ 399 (aproximadamente R$ 2.370), o Trump sneakers foi o primeiro de uma lista de produtos endossados no ano passado pelo agora presidente dos Estados Unidos, que inclui um medalhão de prata estampado com seu rosto comercializado por US$ 100 (R$ 596) e uma Bíblia de US$ 60 (R$ 360).
A memorabília tem feito sucesso entre apoiadores — a primeira edição dos tênis dourados, por exemplo, já está esgotada — e causado burburinho fora do universo trumpista, que chama atenção para o fato de que parte desses produtos é feita na China.
A Bíblia de US$ 60 é um deles, conforme revelou uma investigação da agência de notícias Associated Press, que apurou que o custo por unidade seria de US$ 3.
Outro produto são os bonés vermelhos bordados com Make America Great Again ("faça a América grande de novo", em tradução literal) que viralizaram nesta semana da posse de Trump porque tinham uma etiqueta informando que o design era americano e outra que deixava claro que a peça em si tinha sido fabricada bem longe dali: "made in China" (fabricado na China).
A China é um dos inimigos declarados dos Estados Unidos na retórica trumpista.
A ideia de que a importação de produtos chineses é uma das forças por trás da decadência da indústria americana motivou o republicano em seu primeiro mandato a impor uma enxurrada de tarifas e travar uma guerra comercial com a China, movimento que deve ter continuidade com seu retorno à Casa Branca.
Nos comícios durante a campanha, Trump prometeu reiteradamente revitalizar a indústria americana.
Essa é uma das ideias centrais expressas pelo slogan Make America Great Again.
No mais recente lançamento, pouco depois de ter sido eleito, Trump emprestou seu nome a uma coleção de guitarras estampadas com uma águia e a bandeira dos Estados Unidos no corpo e o slogan Make America Great Again em maiúsculas no braço.
A comunidade musical reagiu imediatamente ao lançamento. Ao design, muito parecido com o da icônica Les Paul da marca Gibson — que imediatamente enviou uma notificação extrajudicial para a Trump Guitars alertando sobre a cópia — e especialmente à sua origem.
"Será que ela é feita na China? Eu estava me perguntando a mesma coisa", disse o músico e YouTuber americano Taylor Danley em uma transmissão ao vivo no Discord, respondendo a um seguidor, enquanto olhava as especificações no site da marca.
Quem fabrica as Trump Guitars?
O site da Trump Guitars é vago em relação ao local de fabricação dos modelos.
A seção de perguntas frequentes descreve que todas as guitarras "são desenhadas e desenvolvidas por uma empresa de um veterano das Forças Armadas com a ajuda de um mestre luthier".
E informa que foram "produzidas por diferentes fornecedores que são tanto domésticos quanto internacionais".
Isso, como aponta à BBC News Brasil Silas Fernandes, guitarrista e produtor musical brasileiro que mora nos Estados Unidos, é um forte indicativo de que o instrumento não é produzido em solo americano.
"Não existe uma empresa que fabrique nos Estados Unidos e não tenha uma seção dentro do site com as guitarras 'made in USA' anunciadas em letras garrafais", argumenta Fernandes, que também é um técnico de guitarras, profissional que acompanha bandas para fazer manutenção e regulagem do instrumento.
"É um ativo, um marketing muito poderoso o fato de ser americano."
Isso porque boa parte das guitarras vendidas no mundo são produzidas, por questões de custo, na Ásia.
Cerca de 70%, estima o músico, que tem mais de 30 anos de experiência e já chegou a visitar na China uma das maiores fabricantes, que distribui para diversas marcas.
Fernandes afirma que hoje há guitarras chinesas com diferentes níveis de qualidade e preço, a depender da madeira usada como matéria-prima e de peças como as tarraxas e a ponte.
Ainda assim, ele acrescenta, continua existindo um certo "fetiche" pelos modelos fabricados nos Estados Unidos, que costumam ser significativamente mais caros.
A veterana Jackson Guitars, por exemplo, anuncia os modelos da sua American Series como "made in California".
A reportagem questionou a Get Trump Guitars sobre o local de fabricação dos instrumentos vendidos no site, mas não teve retorno.
Com base nas características do modelo, Fernandes diz que ele "muito provavelmente" é fabricado na Ásia, mais precisamente na China, na Coreia do Sul ou na Indonésia.
A qualidade, em sua opinião, não é compatível com o preço, de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8.950) a US$ 11,5 mil (aproximadamente R$ 68,6 mil), nesse caso para as peças autografadas pelo agora presidente.
O custo de produção, segundo ele, "exagerando" chegaria a US$ 100 (R$ 596).
"Me parecem aquelas guitarras da linha mais barata da Epiphone", avalia, referindo-se às versões de menor custo da Les Paul, fabricadas fora dos Estados Unidos.
O braço da guitarra, ele exemplifica, é parafusado, algo que não se observa nas Les Paul originais.
"Toda a comunidade já sacou que é feita na Ásia… o que é muito irônico, vindo de um cara que fez uma campanha política calcada em trazer de volta a indústria americana", opina Fernandes.
O músico Taylor Danley chegou a comprar um dos modelos para ver de perto como ela é feita e ainda aguarda a entrega.
No vídeo em que registrou o processo em seu canal do YouTube, ele chamou atenção para o nome da empresa que aparece na cobrança no cartão de crédito: "God Bless the USA Bible".
Os negócios de Trump
A God Bless the USA Bible está ligada à God Bless the USA, uma plataforma de comércio eletrônico recheada de produtos endossados por Trump, de camisetas a uma jukebox.
O site começou a funcionar em março de 2024, conforme suas redes sociais.
O nome faz referência à música homônima lançada em 1984 pelo cantor Lee Greenwood, que é amigo pessoal de Trump e se apresentou durante a posse.
O site pessoal do artista é listado, junto com o site que vende as Trump Guitars, entre os "amigos e parceiros" da página do God Bless the USA.
Não está clara qual relação ele tem com a marca e qual participação tem na empresa.
Os negócios recentes se somam à longa lista de projetos em que Trump investiu antes de entrar na política, que inclui um império imobiliário com hotéis e campos de golfe.
Ele também já ganhou muito dinheiro emprestando seu nome a dezenas de produtos por meio de contratos de licenciamento durante sua carreira na televisão, quando foi apresentador do reality show O Aprendiz, e em empreitadas próprias, de roupas masculinas a água mineral.
Desde que deixou a Casa Branca, expandiu os investimentos e se aventurou em uma série de novos negócios.
Criou, por exemplo, um grupo de comunicação, batizado de Trump Media & Technology Group, responsável pelo lançamento da rede social Truth Social em 2022.
No mesmo ano, lançou sua marca própria de NFTs (ativos digitais conhecidos como "tokens não fungíveis" e considerados únicos, como uma obra de arte).
A primeira leva de 45 mil cards colecionáveis, vendidos a US$ 99 (R$ 590), estampava imagens do agora presidente jogando golfe, por exemplo, e como super-herói.
O rol de negócios de Trump inclui ainda uma plataforma para negociação de criptomoedas, a World Liberty Financial, lançada em 2024, e, desde a última semana, uma criptomoeda com seu nome.
As empreitadas têm despertado uma discussão sobre potencial conflito de interesses, já que, como presidente, Trump pode tomar medidas que afetam diretamente seus negócios.