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'Mandar dinheiro para a Coreia do Norte é como estar em filme de espionagem'

Vários deles contaram à BBC os detalhes da secreta e arriscada operação que é enviar dinheiro entre as Coreia do Sul e Norte para garantir o sustento dos familiares que permanecem no Norte.

31 jan 2024 - 15h24
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O intermediário Hwang Ji-sung desertou para o Sul em 2009
O intermediário Hwang Ji-sung desertou para o Sul em 2009
Foto: Jungmin Choi / BBC / BBC News Brasil

"É como um filme de espionagem, e as pessoas estão colocando suas vidas em risco", diz Hwang Ji-sung, um sul-coreano que tem atuado como intermediário ajudando desertores norte-coreanos a enviar o tão necessário dinheiro de volta para casa há mais de uma década.

Anos atrás, os norte-coreanos cunharam o termo "raiz Hallasan" para designar pessoas que recebem ajuda de desertores no Sul, diz Hwang.

Hallasan refere-se ao Monte Halla, um famoso vulcão na pitoresca ilha de Jeju, na Coreia do Sul.

"Uma pessoa de família Hallasan é considerada o cônjuge mais desejável, até mais que os membros do Partido Comunista", diz ele.

Uma pesquisa de 2023 realizada pelo Centro de Banco de Dados para os Direitos Humanos da Coreia do Norte, que entrevistou cerca de 400 desertores norte-coreanos, descobriu que cerca de 63% haviam enviado dinheiro para as famílias no Norte.

Mas agora, com crescente repressão tanto do Norte quanto do Sul, a remessa de dinheiro do Sul para o Norte está cada vez mais ameaçada.

Já é uma tarefa complexa e difícil, exigindo uma rede escondida de intermediários e mensageiros espalhados pela Coreia do Sul, China e Coreia do Norte.

Ligações secretas com telefones chineses contrabandeados são feitas em locais remotos. Codinomes são usados.

Os riscos são incrivelmente elevados, uma vez que as remessas são proibidas tanto na Coreia do Sul como na Coreia do Norte.

Desde 2020, o líder norte-coreano Kim Jong-un intensificou a repressão aos intermediários para impedir o fluxo de dinheiro e a "ideologia e cultura reacionárias" da Coreia do Sul.

Eles correm o risco de serem enviados para os temidos campos de prisioneiros políticos do país, conhecidos como kwan-li-so, onde se acredita que centenas de milhares de pessoas tenham morrido.

O casal está no negócio de transferência de dinheiro há mais de uma década
O casal está no negócio de transferência de dinheiro há mais de uma década
Foto: Jungmin Choi / BBC / BBC News Brasil

"O número de intermediários na Coreia do Norte caiu mais de 70% em comparação com alguns anos atrás", diz Joo Soo-yeon, esposa de Hwang. Ela também atua como intermediária.

A Coreia do Sul também proíbe tais transferências, mas no passado as autoridades deixaram passar. Agora isso está mudando.

Em abril passado, a casa de Hwang e Joo na província de Gyeonggi - que fica perto de Seul - foi invadida por quatro agentes da polícia, que a acusaram de violar a lei de transacções cambiais.

Pelo menos outros sete intermediários que atuam no envio de dinheiro também estão sob investigação.

A polícia não respondeu à BBC sobre o caso de Joo.

As autoridades sul-coreanas disseram a Hwang que qualquer transferência de dinheiro para a Coreia do Norte deveria ser realizada através de um "banco legítimo".

"Se houver um, me avise!" disse ele, acrescentando que não existe uma instituição que possa receber dinheiro legalmente na Coreia do Norte, uma vez que as duas Coreias ainda estão tecnicamente em guerra.

As relações inter-coreanas têm piorado desde que o Norte acabou com um escritório de ligação conjunto com o Sul em 2020. No início deste mês, o líder norte-coreano Kim Jong-un chegou a dizer que já não era possível alcançar a reunificação com o Sul - um objetivo que consta na constituição.

Ligações secretas

Tudo começa com um telefonema entre desertores no Sul e as suas famílias no Norte - tornado possível por telefones chineses contrabandeados nas províncias fronteiriças e que podem acessar as redes de telecomunicações chinesas.

As ligações são facilitadas por intermdiários na Coreia do Norte, que precisam viajar longas distâncias e às vezes até escalar montanhas para conseguir tais ligações.

Após horas de espera, a ligação é completada e o desertor acertará o valor com as famílias. Mas a conversa tem de ser rápida para evitar a vigilância do Ministério da Segurança do Estado.

O desertor então faz um depósito em uma conta chinesa por meio de intermdiários na Coreia do Sul. O que também é cheio de riscos, uma vez que a China também monitora de perto o fluxo de moeda estrangeira.

É papel dos intermediários chineses trazer o dinheiro para a Coreia do Norte.

As fronteiras são relativamente porosas, já que a China é o aliado mais importante da Coreia do Norte. As remessas provenientes de desertores são por vezes disfarçadas como transações entre empresas chinesas e norte-coreanas.

Vários mensageiros trabalham na Coreia do Norte para entregar o dinheiro às famílias.

Kim Jin-seok era mensageiro na Coreia do Norte antes de fugir do país em 2013
Kim Jin-seok era mensageiro na Coreia do Norte antes de fugir do país em 2013
Foto: Jungmin Choi / BBC / BBC News Brasil

"As pessoas que entregam o dinheiro não se conhecem e nem deveriam, porque as suas vidas estão em jogo", diz Kim Jin-seok, que trabalhava como mensageiro na Coreia do Norte antes de fugir do país em 2013.

Os intermediários precisam usar pseudônimos e desenvolver códigos para sinalizar quando será seguro para as famílias receber os fundos.

Hwang, que tem cerca de 800 clientes, diz que chegou a ver casos de famílias que rejeitaram o dinheiro.

"Eles estavam com medo de que pudesse ser uma armadilha preparada pela polícia de segurança e diziam coisas como: 'Não aceitaremos dinheiro de traidores'".

Assim que o dinheiro é entregue, os intermediários recebem cerca de 50%.

"Os intermediários norte-coreanos arriscam suas vidas para ganhar de 500 mil a 600 mil wons por transferência", diz Hwang — o valor equivale a cerca de R$ 2 mil.

"Hoje em dia, se você for preso por um agente de segurança e condenado, poderá pegar 15 anos de prisão. Se for condenado por espionagem, será enviado para um kwan-li-so."

Hwang nos mostra depoimentos de norte-coreanos que receberam dinheiro através do seu negócio.

Um norte-coreano conta o dinheiro após receber a entrega de intermediários
Um norte-coreano conta o dinheiro após receber a entrega de intermediários
Foto: handout / BBC News Brasil

"Eu passava fome todos os dias e comia grama", chora uma senhora em um deles, com as mãos inchadas de tanto procurar comida na floresta.

No mesmo vídeo, outra mulher diz: "Aqui é tão difícil que quero agradecer 100 vezes".

Joo diz que seu coração se parte toda vez que ela vê esses vídeos.

"Alguns desertores deixaram os seus pais e filhos para trás. Eles simplesmente querem garantir que as suas famílias na Coreia do Norte sobreviverão para que um dia possam reunir-se."

Ela diz que um milhão de wons é suficiente para alimentar uma família de três pessoas durante um ano no Norte.

Linha cortada

Não está claro por que a Coreia do Sul começou a reprimir a ação dos intermediários, mas o advogado Park Won-yeon, que tem dado apoio jurídico aos desertores, acredita que o excesso de zelo pode ser um fator, já que o poder de investigar casos de segurança nacional, como espionagem, foi transferido para a polícia do Serviço Nacional de Inteligência este ano.

"Se a polícia não conseguir provar as acusações de espionagem, irá processá-los segundo a Lei de Transações Cambiais", diz ele.

Sob pressão crescente de ambos os governos, esta boia de salvação para as famílias dos desertores norte-coreanos poderá ser cortada.

Hwang está pronto para levar o caso da sua esposa até a Suprema Corte se ela for condenada. Ele acredita que as remessas dos desertores são importantes para além do valor financeiro.

"É a única maneira de derrubar a Coreia do Norte sem lutar", diz ele.

"Juntamente com o dinheiro, também vem o sinal de que o Sul é próspero e rico. É disso que Kim Jong-un tem medo."

Kim Jin-seok acredita que desertores como ele não deixarão de enviar dinheiro aos entes queridos em seu país de origem, embora autoridades de ambos os lados queiram impedi-los. Ele diz que viajará pessoalmente à China para entregar o dinheiro, se necessário.

"Corro o risco de nunca mais ver meus filhos, mas pelo menos eles terão uma vida boa", diz ele.

"Enviaremos o dinheiro da maneira que pudermos, não importa como."

Ele agora trabalha como motorista de caminhão na Coreia do Sul e dorme no veículo cinco dias por semana.

Ele está economizando o máximo possível para poder enviar quatro milhões de wons para sua esposa e dois filhos no Norte todos os anos. E reproduz uma mensagem de áudio de sua família repetidamente.

Um de seus filhos diz: "Como você está, pai? Quanto você sofreu? Nossas dificuldades não são nada comparadas às suas".

Kim Jin-seok recebeu um pseudônimo por medida de segurança.

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