Melhor amiga de Anne Frank foi salva por oficial nazista
A história de como Jacque van Maarsen conseguiu se livrar dos campos de concentração alemães mesmo sendo judia - e toda a sua relação com a amiga, que viria a ser famosa posteriormente por narrar seu cativeiro em Diário de Anne Frank
Durante o período de dominação alemã da Segunda Guerra Mundial, a Holanda enviou 107 mil judeus para campos de concentração. Apenas 5,2 mil sobreviveram. Considerada por Anne Frank sua melhor amiga – conforme está escrito no seu famoso Diário -, Jacqueline van Maarsen só escapou da deportação para um destino semelhante porque seu nome entrou na lista de Hans Georg Calmeyer. À frente da Direção de Administração Interior, o advogado livrou pessoas que não fossem “puramente judias” da perseguição nazista.
Jacqueline é filha de pai judeu holandês e mãe católica francesa. Aos 86 anos, ela não sabia que seu nome constava na famosa lista de Calmeyer – pelo menos 3,7 mil judeus se livraram da morte por causa da intervenção do advogado. Foi alertada para o fato por um pesquisador durante uma palestra na Casa de Anne Frank de Berlim há poucos meses. A entrevista para o Terra em sua casa no sul de Amsterdã foi a primeira que concedeu depois de confirmar a informação.
“Não se sabe ao certo se Calmeyer salvou tantos judeus apenas porque sabia que a Alemanha perderia a guerra, mas de qualquer forma ele o fez. Quando você tinha apenas o pai ou a mãe judeu, ele organizava para que você não fosse considerado judeu”, explica Jacqueline, que perdeu muitos primos e tios por causa da perseguição dos nazistas.
“Eu não acreditei no que esse pesquisador falou logo na primeira vez, mas ele me mostrou um documento onde estavam as assinaturas da minha mãe e do meu pai. Foi esse papel que permitiu que eu não precisasse mais frequentar a escola judia e pudesse não fazer mais parte da comunidade judia à época, o que foi muito difícil porque a comunidade era muito unida e eu gostava da escola. Foi muito estranho saber disso apenas agora quando eu já tenho 86 anos.”
A amizade com Anne Frank
A relação com Anne Frank surgiu antes, quando as duas foram colegas na escola de judeus criada pelos alemães para segregá-los do restante da população. “Os alemães que haviam fugido para a Holanda eram muito unidos e não se misturavam muito com a gente. Mas, no momento que a gente se conheceu, ela deixou um pouco esse grupo (Anne era alemã). Ela era bastante doce comigo”, conta Jacqueline. “Nunca conheci ninguém que gostasse mais de viver do que Anne. Nós estávamos sempre ocupadas fazendo alguma coisa divertida.”
Mas, como é normal em qualquer idade, as duas também tinham alguns desentendimentos. “Ela era bastante ciumenta, queria que eu fosse amiga só dela. Algumas vezes ela ficava brava comigo porque eu conversava com outras pessoas”, lembra.
Quando a perseguição aos judeus aumentou, as duas fizeram uma promessa: a primeira que tivesse de fugir dos nazistas (ou que fosse capturada por eles) deixaria uma carta para a outra. Em julho de 1942, a irmã de Anne, Margot, recebeu uma carta que a ordenava a se apresentar para os alemães afim de que fosse levada para um campo de trabalho forçado.
A carta foi o estopim para toda a família Frank se esconder no anexo do prédio da antiga empresa de Otto, pai das duas. Numa tentativa de despistar os nazistas, ele deixou um bilhete avisando que todos teriam fugido para a Suíça.
Impedida pela mãe de dar qualquer pista de seu paradeiro, Anne escreveu, na verdade, mais de uma carta para Jacqueline durante o período de pouco mais de dois anos que a família passou escondida. Anexou-as ao diário na esperança de poder reencontrar a amiga um dia.
A cópia das cartas só chegou às suas mãos depois da guerra por meio de Otto Frank, o único sobrevivente das oito pessoas que ficaram no esconderijo até serem capturadas pelos nazistas e mandadas para campos de concentração. “Foi muito triste ler aquelas cartas cheias de amizade no momento que soube que ela tinha sido morta”, diz Jacqueline.
O primeiro contato com o Diário
Otto também mostrou a ela o livro que Anne Frank havia escrito no claustro antes de publicá-lo. “Eu pude ver que aquela era mesmo a letra dela, que era muito bonita, ao contrário da minha”, lembra Jacqueline, que só leu a obra por inteiro depois da publicação em holandês, em 1947.
“Anne foi muito honesta sobre si mesma no livro. Aquela era a Anne que eu conhecia. A única coisa que ela inventou um pouco foi que todos os garotos estavam sempre caindo de amores por ela. Aquilo não era verdade”, sorri.
Ela acredita que a amiga se inspirou na série de livros holandesa Joop ter Heul, que as duas leram juntas. para escrever a sua obra-prima. “É por isso que ela me chama de Joopie no seu diário.”
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literário do livro escrito por Anne Frank. Até por isso não ficou surpresa, na época, quando soube que Otto estava tendo dificuldades em achar um editor que o publicasse.
“’Quem iria parar para ler um livro de uma criança?’, eu pensava. Otto me deu um livro e eu escrevi uma carta para agradecê-lo em que finalizei dizendo ‘quem sabe um dia o Diário de Anne Frank não vai ser uma obra famosa’. Jamais podia imaginar que isso realmente aconteceria, havia escrito aquilo apenas para agradá-lo.”
Os livros sobre a amiga
Apesar do sucesso do Diário e da fama da amiga, Jacqueline publicou o seu primeiro livro sobre a relação das duas apenas em 1990. “Fiz o melhor para tocar a minha vida sem pensar nas coisas ruins da guerra. Claro que me sentia triste por tantas famílias que nunca voltaram dos campos de concentração, toda a família do meu pai, mas ao mesmo tempo estava aliviada de estar viva.”
Durante 43 anos, ela dedicou-se ao marido, aos filhos e ao seu atelier de encadernação de livros. Até que Eva Schloss, filha da segunda mulher de Otto Frank publicou um livro em que contava algumas inverdades, como diz Jacqueline.
Foi então que bateu a vontade de escrever também sobre o assunto e hoje ela já tem quatro livros publicados sobre a relação com Anne. O último, ‘Je Best Vrienden Anne’ (‘Sua Melhor Amiga, Anne’, do holandês), publicado em 2011 e voltado para crianças e adolescentes, recebeu um dos maiores da literatura holandesa, o Zilveren Griffel (Tinteiro de Prata), no ano seguinte.
“Agora eu fico feliz de falar com as pessoas sobre minha relação com Anne e o holocausto. Ainda há pessoas que acreditam que o holocausto não ocorreu ou, como boa parte dos jovens alemães com quem eu converso, que não entendem como seus avós puderam fazer uma coisa dessas.”