'Minha mãe me ligou para contar que comprou pão', conta editora da BBC Ucrânia
Na segunda semana da guerra, Marta Shokalo diz que as prateleiras vazias são cada vez mais uma realidade na Ucrânia.
Na segunda semana desta guerra, percebi que não choro mais.
Começo o dia lendo as notícias da noite, que contabilizam novas explosões por toda a Ucrânia. Alguns dias atrás, acordei com relatos de grandes ataques com foguetes em Kiev, perto de onde meu pai mora. Levei 10 minutos para tomar coragem para ligar para ele, para perguntar se ele e sua companheira estavam bem. Eles estavam, e eu senti uma onda de alívio.
Quando vejo imagens horríveis de destruição em Kiev e tanques russos nas cidades e vilarejos próximos, penso nestes lugares outrora tranquilos, onde nossos amigos têm casas de campo. Costumávamos visitá-los com nossos filhos, fazíamos churrascos e bebíamos vinho em poltronas aconchegantes. Algumas destas cidades foram destruídas por intensos combates e artilharia.
No início da guerra, uma coisa que encheu meus olhos de lágrimas foi uma mensagem em um aplicativo de eventos em Kiev. Era uma lista de coisas que não aconteceriam naquele dia — concertos e exposições, eventos que parecem fazer parte de uma vida passada. Estes aplicativos agora fornecem diferentes tipos de informações — notificações sobre ataques aéreos, listas de supermercados com alimentos e farmácias com remédios.
Minha mãe está mais preocupada em como conseguir comida para seu cachorro e gatos do que para ela mesma, mas me ligou feliz outro dia só para contar que tinha conseguido comprar dois pães! Isto em uma cidade onde os alimentos costumavam estar disponíveis em grande abundância.
Isso é mais chocante para mim do que fotos de tanques russos incendiados. A escassez de alimentos e as prateleiras vazias são a nossa realidade agora. As pessoas compartilham informações sobre onde você consegue comprar — e o quê. Alguns estabelecimentos comerciais enfrentam desabastecimento, mas ao mesmo tempo há sempre o suficiente para quem precisa. Os restaurantes preparam comida de graça para soldados, pessoas que perderam suas casas ou qualquer um que necessite.
Meu filho de 10 anos não está indo à escola, nem tem aulas online. Alguns professores ficaram em Kiev, outros foram embora. Seus colegas fugiram para o campo ou para o exterior. Eles conversam no Zoom, jogam games e fingem ser hackers que lutam pela Ucrânia. Um dos grupos de bate-papo que eles abriram em um aplicativo de mensagens se chama "assuntos de guerra".
Todos os dias, os ucranianos enfrentam a decisão de ficar ou sair.
Durante a primeira semana de guerra, quase um milhão de pessoas fizeram as malas e deixaram a Ucrânia para se tornar refugiadas. Este número está aumentando rapidamente.
Mas muitas outras decidiram ficar, pelo menos por enquanto. Cantores famosos, artistas e atletas se alistaram no exército. Milhões de ucranianos se tornaram voluntários, tentando ajudar os mais necessitados.
Parece que os ucranianos se tornaram uma grande família em que todos os membros estão tentando ajudar, da maneira que podem. Aqueles que são capazes de lutar, lutam. Quem sabe cozinhar, cozinha. Quem pode fazer entregas, faz entregas.
Ouvi uma história comovente de Kherson, a primeira cidade tomada pelas forças russas, onde um homem idoso sem pernas e dedos se tornou voluntário.
Agora, todas as cidades e vilarejos têm postos de controle, feitos de sacos de areia, blocos de cimento e árvores cortadas. Homens armados — jovens profissionais que fugiram de Kiev, agricultores locais ou pensionistas — verificam os documentos de quem entra.
O vilarejo em que estou hospedada tem dois postos de controle, ocupados por homens locais que se revezam para operá-los 24 horas por dia. Eles têm rifles de caça e alguns carregam facas ou machados. Estão prontos para proteger suas pequenas comunidades com tudo que têm.
Este sentimento de unidade nunca foi tão forte entre os ucranianos. O país está repleto de atividades como uma colmeia, produzindo a esperança de vitória.
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