Mistério: mulheres indígenas desaparecem no Canadá
Entre 1980 e 2012, cerca de 1.200 mulheres e garotas indígenas foram assassinadas ou desapareceram
Rinelle, uma estudante canadense de 16 anos, tomava alguns drinques com os amigos, quando dois jovens a levaram a um lugar isolado embaixo de uma ponte. Ali, a agrediram e estupraram.
Ela se lembra de estar em um rio, mas não sabe se estava ali porque conseguiu escapar ou porque os homens a atiraram lá.
Quando conseguiu sair da água, os dois a atacaram novamente até acreditarem que ela estava morta. Quando foi encontrada mais tarde, seminua e inconsciente, na beira do rio, não havia muitas esperanças de que ela pudesse sobreviver.
"A temperatura era muito baixa", disse à BBC o investigador encarregado do caso, John O'Donovan, da polícia de Winnipeg, capital da província de Manitoba, na região central do Canadá.
"Estava a ponto de morrer, mas o frio salvou a vida dela", explica, referindo-se ao fato de que baixas temperaturas desaceleram o metabolismo e permitem que o corpo inicie o processo de cicatrização.
Rinelle viveu para contar o que aconteceu com ela, uma oportunidade que outras dezenas de mulheres e garotas, assassinadas ou desaparecidas em anos recentes nessa cidade perto da fronteira com os Estados Unidos, não tiveram.
Como Rinelle, a grande maioria das vítimas pertence à população indígena do país, que segundo um relatório publicado no ano passado pela polícia canadense, tem uma possibilidade quatro vezes maior de ser assassinada ou sequestrada. E é possível que esses números oficiais ainda estejam bem abaixo da realidade.
De acordo com o relatório, entre 1980 e 2012, cerca de 1.200 mulheres e garotas indígenas foram assassinadas ou desapareceram. O número é consideravelmente alto, tendo em vista que a população indígena equivale a menos de 5% da população de 35 milhões de habitantes do Canadá.
Momento decisivo
Foi em um domingo de agosto de 2014, semanas antes de encontrarem Rinelle Harper entre a vida e a morte, que O'Donovan recebeu, em casa, uma ligação contando que haviam encontrado um corpo em um saco no Rio Vermelho do Norte, o rio que atravessa Winnipeg, a cidade com maior população indígena do Candá.
O corpo estava em um estado tão avançado de decomposição, que foram necessárias quatro horas para conseguir constatar que ele era de uma jovem e outras quatro para tentar uma identificação.
Uma tatuagem de asas de anjo nas costas indicou aos oficiais que se tratava de uma garota que havia deixado sua casa. Ela tinha 15 anos e se chamava Tina Fontaine.
O caso de Tina figurou nas primeiras páginas de todo o Canadá, não só pela natureza horrível do crime, como também pelo que ele representava. Tina também era indígena.
A indignação coletiva diante de sua morte marcou um momento decisivo para uma cidade que até então praticamente ignorava a sucessão sem fim de ataques violentos contra indígenas.
Desaparecidas
Em Winnipeg, já havia uma equipe de operações especiais chamada "Project Devote", formada há quatro anos para investigar casos ainda sem conclusão em que a vítima é considerada vulnerável.
No escritório da equipe, há mapas com pontos que indicam os lugares em que as vítimas dos 29 casos que estão investigando foram vistas pela última vez e onde seus corpos foram encontrados.
A maioria dos casos envolve mulheres indígenas.
Até agora, apenas um caso chegou aos tribunais.
O delegado Jason Michalyshen explica que o desafio é enorme: "Muitas vezes, quando se trata de desaparecidas, não há uma cena de crime que possamos analisar para encontrar provas."
"Entendemos que é horrível para os familiares, mas também é frustrante para os investigadores, que não contam com nenhuma informação", disse.
Bernadette Smith é um desses familiares desesperados – e também frustrados.
Ela está em busca de sua meia-irmã Claudette Osborne, que foi vista pela última vez em julho de 2008, com um caminhoneiro em uma estrada interurbana.
Claudette tinha 21 anos e tinha acabado de dar à luz seu quarto filho.
"Ela estava sangrando e esse homem estava tentando ter relações sexuais com ela", contou Bernadette à BBC. "Ela tentou pedir socorro a alguém, eram quatro da manhã."
Mas o celular para o qual Claudette estava ligando ficou sem crédito, e a família só ouviu a mensagem da jovem alguns dias depois. A essa altura, a mulher já estava desaparecida.
E essa não é o único caso desse tipo com que Bernadette teve de lidar. Outras três mulheres da sua família estão desaparecidas ou foram assassinadas.
Junto com outros familiares de indígenas desaparecidas, Bernadette andou vasculhando o rio com varas e ganchos metálicos na tentativa de encontrar corpos. Eles acham que a polícia não está fazendo o suficiente.
Discriminação
Uma opinião generalizada no Canadá é de que os povos aborígenes são maltratados e discriminados principalmente por membros da própria comunidade.
Os números compilados pela polícia do país dão respaldo a isso: entre 1980 e 2012, mais de 60% dos assassinatos de mulheres indígenas registrados foram cometidos pelos próprios maridos delas, por familiares ou amigos próximos.
Os outros 40% seriam causados por estranhos ou 'conhecidos casuais', um termo que muitas vezes é usado para descrever a relação entre trabalhadores sexuais e clientes.
Shawn Lamb, condenado em Winnipeg em 2013 por assassinar duas mulheres aborígenes, descreveu ambas como "as vítimas perfeitas", porque ninguém parecia se importar com seu desaparecimento.
Essa também pode ser a razão pela qual uma grande quantidade de indígenas estava entre as vítimas do assassino em série mais famoso do Canadá, o criador de porcos, Robert Pickton.
Restos do DNA de 33 mulheres foram encontradas em sua fazenda quando ele foi preso, em 2002. Algumas eram prostitutas, outras dependentes de drogas.
Em Winnipeg também, muitas das mulheres indígenas assassinadas eram profissionais do sexo.
Nos últimos anos, a unidade de polícia contra exploração começou a patrulhar a cidade durante à noite para proteger as mulheres de qualquer risco.
"Não temos autoridade legal para tirá-las da rua, mas perguntamos se podemos ajudá-las de alguma maneira para que deixem de trabalhar no comércio sexual, que é um lugar sempre de muito risco."
Por que tantas terminam nas ruas?
"Às vezes esquecemos que o Canadá foi estabelecido em cima de um imperialismo colonial, alimentado pelo racismo", disse Nahanni Fontaine, assessora especial de assuntos indígenas para o governo de Manitoba.
"Os povos aborígenes consideravam as mulheres e crianças como sagradas e iguais, mas isso mudou e hoje 'são prostitutas e promíscuas'", conta.
Além disso, uma série de políticas do governo contribuíram para a discriminação contra todos os povos nativos, em especial as mulheres.
A principal era a prática de tirar os filhos das mães indígenas para criá-los em colégios residenciais, que muitas vezes eram brutais e abusivos. Essa política foi implementada por mais de um século, até quase 20 anos atrás.
A ideia era integrar os indígenas à sociedade, mas o efeito foi de isolá-los ainda mais.
Outras políticas, como a de tirar as crianças das famílias e enviá-las para serem criados em outro lugar - às vezes até para outros países - para se adaptarem, e a necessidade de as crianças aborígenes deixarem suas casas em reservas indígenas para terminar seus estudos também contribuíram para destruir a estrutura familiar dos indígenas.
Segundo Fontaine, essas práticas ajudam a explicar por que as mulheres e jovens aborígenes muitas vezes acabam marginalizadas, vulneráveis à exploração, atraídas pela prostituição e as drogas.
Mas acima de tudo, "existe essa crença errada de que a exploração sexual ou os níveis selvagens de violência são culpa das mulheres", disse Fontaine. Ela ressalta que é importante discutir mais sobre os homens responsáveis por esses crimes.
Futuro
Em janeiro, motivado por uma matéria em uma revista que chamou Winnipeg de "o lugar com o maior problema de racismo no Canadá", o chefe de polícia local prometeu resolver o problema da violência contra indígenas, mas observou se tratar de "uma questão social profunda que deve ser abordada a partir de uma perspectiva holística da comunidade".
Isso porque, geralmente, quando um caso chega à polícia, "muitas vezes já é tarde demais".
A opinião dele, no entanto, diverge da do primeiro-ministro do Canadá, Stephen Harper, que vê as mortes como um caso de polícia, e não uma questão social.