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'O momento em que perdi a pessoa que mais amava para o QAnon'

Rede de teorias da conspiração completamente infundadas tem abalado famílias e amizades; 'minha mãe faz parte de uma seita da morte', lamenta uma americana.

18 set 2021 - 20h07
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Foto: BBC/Getty Images / BBC News Brasil

Era janeiro de 2021 quando o filho de 14 anos de Nicole Lauber a levou ao pronto-socorro de um hospital. Horas antes, Nicole estava passeando de carro em sua pequena cidade natal no Estado do Kansas, quando começou a ter palpitações e seu braço e rosto ficaram dormentes."Eu pensei que estava tendo um ataque cardíaco."

Nicole teve um ataque de pânico depois de 10 meses vendo sua mãe sendo tragada para um mundo de teorias da conspiração. Especificamente, o QAnon — um movimento em expansão que inspirou protestos, abalou famílias e amizades e continua a encontrar novos seguidores online.

Os médicos do hospital disseram a Nicole que entendiam bem o que ela estava sofrendo. Eles também tinham ouvido falar do QAnon, que varreu as cidades pequenas de seu Estado.

QAnon é uma teoria ampla e completamente infundada de que o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, estaria travando uma guerra secreta contra pedófilos adoradores de Satanás de elite no governo, no empresariado e na imprensa.

A conspiração surgiu no site de mensagens online 4Chan em 2017, com postagens atribuídas a alguém que afirmava ser um insider do governo com autorização de segurança de nível "Q" ultrassecreto. Usando o pseudônimo "Q", essa pessoa dizia estar vazando informações sigilosas.

Muitos seguidores do QAnon acreditam que a posse do presidente Joe Biden foi falsa e que Trump logo será reintegrado como líder. Na era da covid, alguns seguidores também acreditam que as vacinas estão sendo desenvolvidas pelos ricos para controlar as mentes das massas.

Os seguidores acham que esses segredos um dia serão revelados ao grande público e levarão a um ajuste de contas, culminando na prisão e execução de pessoas importantes, como a ex-candidata presidencial democrata Hillary Clinton.

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Foto: BBC News Brasil

Para Nicole, o QAnon é completamente estapafúrdio. Mas, para sua mãe, as teorias eram fatos concretos e, ao se recusar a acreditar nisso, sua filha estava optando por ficar do lado de uma "cabala" do mal. Embora não fossem próximas quando ela era jovem, as duas passaram a ter um relacionamento caloroso nos últimos anos, depois que Nicole virou mãe.

"Ela foi uma avó maravilhosa", disse Nicole. "Ela me apoiou muito. Quando eu entrava em colapso mental com o bebê chorando a noite toda, ela dizia, 'venha ficar comigo por algumas semanas', e ela sempre estava lá me ajudando com meus filhos".

Quando Nicole começou a cursar a universidade, sua mãe se gabava para as amigas de como estava orgulhosa. Era o relacionamento que Nicole sempre sonhara. Então, no ano passado, a mãe de Nicole assistiu a um filme que acusa a imprensa de manipulação generalizada.

"E foi isso. Ela entrou instantaneamente neste mundo QAnon."

Nicole inicialmente tentou aceitar as novas crenças de sua mãe. Quando sua mãe mandava um artigo e perguntava o que ela achava, Nicole lia e tentava refutá-lo de maneira respeitosa. Embora ela achasse que os artigos que estava recebendo eram "malucos", ela não percebeu de imediato no que sua mãe estava se afundando.

Então, um dia no ano passado, sua mãe lhe enviou um artigo com uma lista de mais de 100 celebridades que se opunham ao então presidente Trump. Essas celebridades, afirmava o artigo, seriam presas e executadas ao vivo na TV.

"Eu falava 'por que você quer isso'? Por que você sequer iria querer ver algo assim?", diz Nicole.

A mãe de Nicole respondeu que as celebridades listadas, como Beyoncé e Ellen Degeneres, "cultivam" sangue de crianças para manter sua juventude e energia."Foi quando eu soube que ela fazia parte de uma seita. Uma seita da morte."

Por que as pessoas se perdem em conspirações

Embora seja difícil de medir o apoio ao QAnon, um em cada cinco americanos disse acreditar em alguns de seus princípios, de acordo com uma pesquisa recente do instituto Public Religion Research Institute.

Pessoas de diferentes origens podem ser levadas a acreditar em teorias de conspiração. Segundo os especialistas, o que elas têm em comum é que muitas vezes procuram preencher um vazio em suas vidas.

"As teorias da conspiração tendem a ser particularmente proeminentes em tempos de crise", disse a professora Karen Douglas, psicóloga social da Universidade de Kent, que se especializou em psicologia das teorias da conspiração.

"As pessoas estão procurando explicações que as ajudem a lidar com situações difíceis quando há muita incerteza e informações contraditórias. Elas também podem estar procurando por respostas simples que as façam se sentir melhor, e as teorias da conspiração podem parecer oferecer essas respostas simples."

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Foto: BBC/Getty Images / BBC News Brasil

As pessoas recorrem a essas teorias "quando necessidades psicológicas importantes são insatisfeitas ou frustradas". Eles podem precisar se sentir bem informados, ou as teorias podem dar-lhes uma sensação de segurança e proteção, disse ela.

Estudos feitos por cientistas políticos também encontraram semelhanças entre como funcionam as comunidades políticas e as teorias da conspiração. Por exemplo, os republicanos nos EUA têm maior probabilidade de acreditar em teorias de conspiração sobre o governo quando um democrata é presidente e vice-versa. QAnon é um pouco diferente, pois é uma teoria da conspiração de direita que floresceu sob um presidente republicano.

Para parentes, ver isso acontecer de fora com entes queridos, pode ser devastador.

"As pessoas costumam entrar em contato comigo para falar sobre parentes seus que foram 'perdidos' para as teorias da conspiração", diz Douglas. "Muitas vezes me perguntam o que podem fazer para 'reencontrar' seu amigo ou ente querido".

'Ele acha que há um rastreador do governo na vacina'

Às vezes, as pessoas também caem nessas teorias por razões sociais, tentando encontrar uma sensação de comunidade que se perdeu.

Em meio à pandemia de covid-19, que empurrou bilhões de pessoas ao redor do mundo para o isolamento, nasceu uma nova linha de teorias da conspiração — aquelas que afirmavam que o vírus era uma farsa e que as vacinas foram desenvolvidas para permitir que os poderosos controlassem as mentes das massas.

Para Lauren*, a obsessão de seus pais por QAnon significa que eles não comparecerão a seu casamento neste ano.

"Eu tive uma criação muito religiosa, meus pais são cristãos evangélicos e eles aderiram muito a isso", disse Lauren à BBC. "Posteriormente, eles se desviaram do aspecto religioso, mas ainda queriam aquele senso de comunidade, e eles acharam isso em outro lugar".Em 2016, o pai de Lauren se interessou pela notícia falsa que ficou conhecida como"Pizzagate", uma teoria da conspiração que afirmava que Hillary Clinton dirigia uma quadrilha de pedofilia baseada no porão de uma pizzaria específica em Washington DC. A teoria levou um homem a disparar um rifle dentro do restaurante em dezembro de 2016.

Agora, o pai de Lauren acredita que as vacinas da covid são "rastreadores do governo que vão matar todos nós". O noivo de Lauren está em grupo de risco para covid, por isso ela insiste que todos no casamento estejam vacinados. Ela sabia que essa seria uma conversa difícil que ela teria que ter com seus pais.

"Eu conversei com minha mãe sobre isso (...) minha mãe é apenas mais desinformada, e eu acho que ela é mais receptiva." Ela esperava que seus pais estivessem dispostos a fazer concessões e não perdessem aquele que seria um dos dias mais importantes da vida de sua filha. Mas suas esperanças foram frustradas.

A mãe disse a ela: "Eu entendo o seu lado, mas não vamos ser vacinados."

Ataque ao Capitólio

Na manhã de 6 de janeiro, Nicole notou uma postagem enigmática de sua mãe no Facebook. Ela não tinha ideia sobre o que ela estava se referindo, mas algo a deixou perturbada. Ao contrário das postagens longas e confusas habituais de sua mãe, esta mensagem continha apenas uma frase: "Espere pelo show", seguida por emojis de bomba.

Mais tarde naquele dia, Nicole viu no noticiário que uma multidão pró-Trump estava invadindo o Capitólio em Washington, a capital americana. Foi uma das coisas mais chocantes que ela já tinha visto na sua vida.

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Foto: BBC/Getty Images / BBC News Brasil

"Ela sabia de algo?" Nicole se perguntou. "Pensando retroativamente... ela sabia de algo por causa de seus grupos, que algo estava para acontecer?"

Cerca de 500 suspeitos foram presos, e uma investigação sobre o que aconteceu naquele dia está em curso.

De acordo com relatórios recentes, uma investigação ampliada vai examinar se a Casa Branca de Donald Trump esteve envolvida no planejamento ou tinha conhecimento prévio sobre a invasão.

'O momento em que soube que meu melhor amigo tinha ido embora'

Quando eram adolescentes crescendo em Pensacola, na Flórida, Will e Zak eram inseparáveis."Eu consideraria Zak meu melhor amigo", disse Will Phillips, agora na casa dos 30 anos, à BBC. Ele até passou um tempo morando com Zak quando seus próprios pais estavam brigados. "Eu tenho um vínculo quase além das palavras com ele."

Os dois seguiram próximos da idade adulta, mas por volta da época da eleição presidencial de 2016, Zak começou a enviar mensagens enigmáticas em seus grupos — coisas como: "Você deveria tomar uma pílula vermelha — você quer tomar uma pílula vermelha?" — algo que não fazia nenhum sentido para Will.

Politicamente, Will achava que ambos tinham ideias liberais. Mas depois que Trump ganhou a eleição de 2016, Will percebeu que Zak e outro amigo, Jimmy, ficaram, como ele mesmo disse, "um pouco mais descontrolados".

"Tornou-se uma espécie de piada entre nosso grupo de amigos que suas opiniões eram meio extremas — mas não levamos isso tão a sério", disse ele. Mas logo foi difícil ignorar que suas opiniões estavam se tornando cada vez mais não apenas excêntricas, mas sinistras.

"Hoje em dia eu tenho muito medo deles", disse Will.

As coisas realmente mudaram em 2020, quando o país já fortemente polarizado enfrentou o coronavírus. A pandemia de covid-19 causou a pior desaceleração econômica do mundo desde a Grande Depressão de 1929, e durante grande parte do ano os EUA foram o epicentro do problema.

Ao mesmo tempo, a campanha para as eleições presidenciais polarizou os EUA ainda mais — e depois que Trump perdeu a eleição para Joe Biden em novembro, ele acusou seu oponente, sem provas, de fraudar a eleição.

Houve uma batalha legal, mas Trump foi derrotado em tribunais de diversos Estados.

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Foto: BBC/Getty Images / BBC News Brasil

Pouco depois da eleição, Will e Zak discutiram sobre os resultados.

Zak argumentou que o pleito tinha sido roubado de Trump e inundou Will com mensagens afirmando que Trump seria reinstaurado como o presidente legítimo, citando "evidências" de que uma conspiração satânica o estava mantendo fora do cargo. Ele até mencionou o "Pizzagate".

"Zak ainda acredita que há crianças naquele porão (do restaurante em Washington)", disse Will.

Ele tentou argumentar com Zak, mas quanto mais resistia, mais intensas as mensagens de Zak se tornavam. "Ele estava me insultando e me dizendo que eu sou mentiroso, que estou 'ajudando a transformar este país em um regime comunista' — eu nem sei o que isso significa!"

Quando Will disse a Zak que tinha votado em Joe Biden, Zak o chamou de traidor.

"Sinceramente, foi como um soco no estômago — como se minha mãe ou meu pai tivessem me dito isso", disse Will. "Crescemos juntos, vimos nossos pais se divorciarem, vivemos juntos na pobreza ... e agora ele está me dizendo que sou um traidor."

Will e Zak não se falam mais. Will se lembra do último ano de sua amizade: "Talvez seja por isso que continuei ouvindo o que ele dizia, só para ver se havia uma forma de recuperá-lo."

Will também revelou que seu ex-amigo Jimmy foi visto em um vídeo participando da invasão do Capitólio.

Ele denunciou o vídeo ao FBI.

'Eu reúno as vítimas do QAnon'

Jitarth Jadeja, de 33 anos de Sydney, Austrália, passou 18 meses mergulhado nas teorias de QAnon. Ele só pensava nelas, até que ficou impossível conversar com qualquer pessoa, mesmo com sua família, sobre qualquer outro assunto que não fosse o QAnon.

Isso até que um dia, em junho de 2019, ele finalmente deu um "reboot" na sua vida.

Na época, ele havia iniciado um curso de tratamento para um problema de saúde mental. Aos poucos as coisas estavam ficando mais claras para ele.

"Eu estava sentado na frente do meu computador ... e pensei: 'O que eu faço agora ... eu estou errado. Isso é o principal, eu estou errado.'"

À medida que sua saúde mental foi melhorando, e ele foi se acostumando com a vida pós-QAnon, ele refletiu sobre o efeito devastador que os últimos 18 meses haviam tido em sua família. Ele postou sobre suas experiências no Reddit: "meio que derramei todos os meus sentimentos e emoções". Ele esperava ser "dilacerado", mas, disse ele, "aconteceu o exato oposto".

Jitarth passou 18 meses pensando e lendo apenas sobre QAnon
Jitarth passou 18 meses pensando e lendo apenas sobre QAnon
Foto: Jitarth Jadeja / BBC News Brasil

"Foi como se as pessoas lá me dessem permissão em nome da sociedade, tipo, 'você errou, mas está tudo bem, você é humano'. Eles me deram permissão para reconquistar um pouco de dignidade e respeito próprio. Se eles não tivessem feito isso, eu não sei o que teria acontecido, eu não estaria aqui. "

Cerca de um mês depois, ele descobriu um novo fórum no Reddit para ajudar a apoiar pessoas cujos entes queridos haviam sido radicalizados pelo QAnon. Ele começou a postar sobre suas experiências lá. De acordo com Jitarth, havia apenas cerca de 400 usuários quando ele entrou, há dois anos. Agora, há mais de 180 mil.

Depois de um tempo, por causa de toda a ajuda e apoio que Jitarth deu às pessoas no fórum, ele foi nomeado moderador, uma função que ainda mantém. Acima de tudo, ele deseja dar às pessoas a esperança de que seus entes queridos, como ele, voltem a ser normais.

Nicole, no entanto, tem poucas esperanças.

"Eu nunca conheci meu próprio pai, então a única pessoa que estava realmente presente na minha vida não está mais. Estou passando pelo processo de luto de perder minha mãe sem que ela tenha morrido. E eu simplesmente não vejo como tê-la em minha vida mais", lamenta.

*Alguns nomes foram alterados

Imagens de Angelica Casas.

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