O que China tem a perder ao apoiar Rússia?
Antes da invasão russa na Ucrânia se tornar realidade, uma possível aliança entre Rússia e China já vinha se desenhando. Agora, guerra na Ucrânia apresenta um grande desafio para Xi Jinping em várias frentes
Antes mesmo da invasão russa na Ucrânia se tornar realidade, uma possível aliança entre Rússia e China já vinha se desenhando.
Os líderes das duas potências se reuniram em Pequim no início de fevereiro e deram mostras de sua proximidade. O encontro, que aconteceu às margens das Olimpíadas de Inverno, foi marcado por declarações de apoio de Xi Jinping a Moscou e suas preocupações com a segurança nacional.
Em um comunicado divulgado após a reunião, os dois países afirmaram que "a amizade entre [Rússia e China] não tem limites, não há áreas 'proibidas' de cooperação" e que pretendem "combater a interferência de forças externas em assuntos internos de países soberanos".
Mas desde que Vladimir Putin reconheceu oficialmente a independência das províncias ucranianas de Donetsk e Luhansk e deu início à operação militar no país vizinho, as declarações de apoio da China se tornaram menos consistentes e mais discretas.
Segundo analistas consultados pela BBC News Brasil, a forma cautelosa com que Pequim vem lidando com a guerra na Ucrânia é reflexo dos temores do país em relação a possíveis retaliações econômicas e políticas.
Qual a posição da China no conflito?
Desde que a Rússia iniciou o envio de suas tropas para a fronteira com a Ucrânia, no final de 2021, a China vem adotando um comedido discurso pró-Moscou.
Nas semanas que antecederam a invasão, o ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, classificou as preocupações de Moscou em relação à sua segurança nacional como "legítimas", afirmando que elas deveriam ser "levadas a sério e discutidas".
Por meio da imprensa estatal, o governo em Pequim também afirmou que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) adota uma posição agressiva ao se recusar a respeitar o direito soberano de outros países - como Rússia e China - de defender seu território.
"Tanto a Rússia quanto a China desejam criar uma posição de antagonismo em relação aos Estados Unidos e encontram nessa ambição uma posição em comum", diz Alexandre Uehara, coordenador acadêmico do Centro Brasileiro de Estudos de Negócios Internacionais da ESPM.
Para Vicente Ferraro Jr., cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP), há também um componente ideológico envolvido na aproximação entre as duas potências.
"Ambas contestam em parte o liberalismo político e acusam o Ocidente de tentar 'exportar' seus modelos políticos, de maneira inapropriada, a outras sociedades e contextos culturais. O liberalismo político e, indiretamente, a democracia representativa são apresentados por ambas não como valores universais, mas como construções do Ocidente instrumentalizadas para fins geopolíticos", diz.
Após o início oficial da operação militar russa na Ucrânia na semana passada, o governo chinês disse acreditar na "soberania e integridade territorial de todos os países", mas também expressou a opinião de que a Rússia tem "preocupações legítimas de segurança" que "devem ser levadas a sério e tratadas adequadamente".
Na quarta-feira (02/03), Pequim ainda rechaçou a possibilidade de impor sanções contra a Rússia e classificou as penalidades econômicas anunciadas por Estados Unidos e Europa como ilegais.
"Não aprovamos as sanções financeiras, especialmente as sanções lançadas unilateralmente, porque elas não funcionam bem e não têm fundamento legal", disse Guo Shuqing, presidente da Comissão Reguladora de Bancos e Seguros da China, em entrevista coletiva. "Continuaremos a manter as trocas econômicas e comerciais normais com as partes relevantes", disse ele.
De forma bastante significativa, a China também não usou em nenhum de seus pronunciamentos a palavra "invasão" quando se trata das ações da Rússia na Ucrânia.
No entanto, de forma surpreendente, Pequim absteve-se do voto do Conselho de Segurança das Nações Unidas condenando a invasão russa da Ucrânia.
O país também preferiu se abster de uma segunda resolução, votada pela Assembleia-Geral da ONU. O texto, aprovado por 141 Estados-membros, também critica o governo russo por suas ações militares e classifica o reconhecimento da independência das regiões de Donetsk e Luhansk como uma "violação da integridade territorial e soberania da Ucrânia, inconsistente com os princípios da Carta das Nações Unidas".
Ao mesmo tempo, um dos fatos mais notáveis sobre a reação da China ao conflito é que não houve palavras do presidente Xi Jinping — todas as declarações foram emitidas por representantes dos ministérios.
O que Pequim tem a perder?
Segundo especialistas em política internacional, o maior receio da China ao apoiar Moscou é prejudicar seus laços econômicos com a Europa e os Estados Unidos.
"A China tem interesses econômicos gigantescos na Europa e tem que tomar cuidado para que seu apoio a Putin não fique tão óbvio a ponto de provocar reações negativas da França, Alemanha ou do continente em geral", diz o americano Bruce Jones, diretor do Projeto sobre Ordem Internacional e Estratégia do think tank Brookings Institution.
Ao todo, a China exportou cerca de US$ 420 bilhões (R$ 2,1 trilhões) em bens para a Europa em 2020, segundo a própria União Europeia (UE), e foi a principal fonte de origem das importações do bloco. O montante só fica atrás do que foi comercializado pela potência chinesa para os Estados Unidos, que chegou a US$ 452 bilhões (R$ 2,2 trilhões).
Já o mercado chinês foi o terceiro principal destino das exportações europeias em 2020, responsável por 10,5% das exportações da UE.
O governo chinês teme que um apoio vigoroso e vocal à operação militar russa possa desencorajar seus parceiros comerciais na Europa e América a expandir ainda mais os negócios.
Ao mesmo tempo, receia que uma piora nas sanções aplicadas contra Moscou possa prejudicar sua própria relação econômica com o mercado russo.
A Rússia também é um parceiro comercial importante para a China e os dois países vêm estreitando ainda mais os laços nos últimos anos.
O comércio total entre as potências saltou 35,9% no ano passado, segundo dados da alfândega chinesa, e Moscou serve como uma importante fonte de petróleo, gás, carvão e commodities agrícolas para Pequim.
"Há uma expectativa de que o aprofundamento das relações comerciais com a China poderá amortizar, ao menos em parte, o impacto das sanções econômicas impostas pelo Ocidente contra a Rússia", diz Vicente Ferraro Jr. "Contudo, o alcance dessa amortização ainda é uma incógnita e não é descartável um efeito colateral das sanções para empresas chinesas que têm relações comerciais tanto com a Rússia quanto com países do Ocidente".
Segundo o especialista, as sanções econômicas contra a Rússia podem gerar o encarecimento de commodities devido às tensões, sobretudo petróleo e gás.
Contudo, a quebra das relações comerciais com a Europa e os EUA pode ser ainda mais danosa para Pequim. "O volume comercial entre a China e países do Ocidente é muito superior ao volume comercial da China com a Rússia", diz Ferraro Jr.
Afronta a interesses internos
Para além do impacto econômico, a China ainda tem interesses políticos em jogo.
Do ponto de vista geopolítico, o governo de Xi Jinping pode estar buscando não se contradizer, pois uma mensagem repetida constantemente pelos líderes chineses é a de que o país não interfere em assuntos internos de outros e que outras nações não deveriam interferir em suas questões internas.
Para Alexandre Uehara, a China não aprovou o reconhecimento da independência das regiões de Donetsk e Luhansk, e assim que a decisão foi anunciada por Putin passou a amenizar seu discurso a favor de Moscou.
"A China também possui territórios que demandam mais autonomia e independência, como Taiwan, Tibete e Xinjiang, e vê no reconhecimento da independência de regiões separatistas na Ucrânia uma afronta aos seus interesses internos", diz.
Segundo Uehara, o governo chinês teme que se apoiar as ações da Rússia na Ucrânia, outros países possam tomar atitudes semelhantes à de Putin em relação aos seus próprios territórios.
E ao se abster das votações nas Nações Unidas contra a Rússia, Pequim pode estar buscando sinalizar para o resto do mundo qual a sua posição verdadeira sobre o tema.
"Embora tal movimento não represente um veto contra a Rússia, ele traz diferentes implicações políticas. Pode representar uma sinalização à Rússia de que a China está preocupada com a escalada de tensões e com o impacto político e econômico que o conflito pode ocasionar no sistema internacional", diz Vicente Ferraro Jr., do Laboratório de Estudos da Ásia da USP.
"Mas também pode sinalizar a países em desenvolvimento e do sul global que a China não compactua de práticas intervencionistas promovidas por grandes potências".
Ao mesmo tempo, quando o governo chinês rejeitou a imposição de sanções contra a Rússia, nos últimos dias, sabia que poderia receber tratamento semelhante se decidir tomar Taiwan à força, no que seria uma operação custosa e sangrenta.
A ilha se proclamou república independente em 1911 e se estabeleceu como uma democracia, mas a China a considera parte inalienável do seu território e nos últimos anos tem se empenhado ostensivamente no projeto de reunificação.
Durante um encontro regular com a imprensa em Pequim, Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, disse que a China nunca acreditou que sanções eram a melhor forma de resolver problemas entre nações.
Para o Partido Comunista Chinês, a forma como a atual crise poderá impactar seu próprio povo e sua visão de mundo também é uma preocupação.
Por esse motivo, o governo está manipulando e controlando as informações sobre a situação na Ucrânia na sua imprensa e mídias sociais.
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