O vilarejo boliviano que escondeu os restos de Che Guevara por 30 anos
Corpo de ícone da esquerda latino-americana foi enterrado às escondidas em antiga pista de pouso de Vallegrande, no sudeste do país; pacto de silêncio entre moradores zelou para que segredo fosse mantido.
Passada a meia-noite, o tratorista recebeu a ordem de levantar-se da cama. Ele e mais três membros do Exército boliviano tinham uma missão especial naquele 11 de outubro de 1967: sumir com o corpo de Ernesto Che Guevara.
O líder guerrilheiro argentino-cubano havia sido executado dois dias antes, em 9 de outubro, e seu corpo ainda estava no hospital de Vallegrande, um povoado no sudeste do país.
Cumprida a tarefa, o tratorista e os outros oficiais juraram guardar segredo.
"A ordem foi para desaparecer com os restos dele para que não houvesse um lugar de peregrinação", disse à BBC o general aposentado Gary Prado. O militar dirigiu a companhia do Exército boliviano que capturou Guevarra, que tentava organizar um levante na Bolívia nos moldes da revolução cubana, em 8 de outubro de 1967.
Quebra do pacto
Em 1995, o pacto de segredo foi rompido, e o oficial Mario Vargas Salinas revelou ao jornalista americano Jon Lee Anderson, biógrafo de Guevara, que os restos dele estavam enterrados na velha pista de pouso de Vallegrande.
A partir dessa informação, uma equipe de especialistas cubanos chegou a Vallegrande para iniciar as buscas pela vala com os restos mortais do guerrilheiro - encontrados em 1997.
Sob condição de anonimato, a BBC conversou com o tratorista e sua mulher, uma professora, que agora vivem em Santa Cruz de la Sierra. Ele critica o colega que rompeu o pacto de segredo.
"Há coisas que se pode contar e outras não", diz ele, que teve sua identidade revelada nos anos 90, na Bolívia, mas nunca aceitou dar uma entrevista. "Os códigos entre militares são algo muito sério."
O casal teme perder a aposentadoria por falar demais sobre o assunto. Contam que o oficial Salinas, que revelou a localização da cova de Guevara ao jornalista americano, sofreu represálias.
Cinquenta anos após sua morte, Che Guevara continua a suscitar debates. O guerrilheiro é ícone da esquerda latino-americana e símbolo da revolução socialista liderada por Fidel Castro em Cuba, que derrubou uma ditadura apoiado pelos Estados Unidos e colocou em prática ideais comunistas.
Para alguns pesquisadores, como o escritor cubano Jacobo Machover, Guevara foi um assassino impiedoso e que só conquistou o status de herói porque as pessoas desconhecem a verdade sobre sua trajetória. Autor do livro A Face Oculta de Che, Machover diz que Guevarra foi "um dos principais responsáveis pelas execuções de 1959 (em Cuba) e mesmo antes, quando estava em Sierra Maestra lutando com Fidel Castro".
Em entrevista à BBC Mundo , o serviço em espanhol da BBC, Machover disse ser "vergonhoso" estampar cartazes e camisetas com o rosto de "um assassino que matava gente que não havia sido julgada".
Vallegrande, 50 anos depois
A cidade de Jesús y Montes Claros de los Caballeros del Vallegrande, localizada a 241 quilômetros de Santa Cruz de la Sierra, foi fundada há 405 anos e tem menos de 15 mil habitantes. Além de ser conhecida por ter abrigado o corpo de Che Guevara por 30 anos (antes de ser levado para Cuba, onde repousa sob o mausoléu em sua homenagem erguido na cidade de Santa Clara), também tem certa fama por causa de seu carnaval e dos licores de frutas que produz.
Em outubro, mês da morte de Che Guevara, recebe um grade número de turistas, que desejam percorrer os locais onde o guerrilheiro passou seus últimos dias.
E no começo do ano, muitos bolivianos chegam à cidade para os festejos de carnaval, que duram uma semana. Há desfile de bandas e cavaleiros, e o consumo de uma bebida típica, uma mistura de uísque com leite morno recém-ordenhado das vacas.
Também é comum que os moradores da cidade abram as portas de casa e ofereçam comida e vinho a visitantes.
Peregrinação
Com a descoberta dos restos mortais de Che Guevara em Vallegrande, aconteceu justamente o que os militares bolivianos temiam: o local virou ponto de peregrinação.
A vala foi coberta - e protegida - por uma espécie de capela, que hoje é a grande atração turística do vilarejo.
As paredes do local estão cobertas por fotos de todas as épocas da vida do argentino-cubano. Há retratos de sua infância em Rosário e Córdoba, imagens de sua juventude e da viagem pela América do Sul, e de sua chegada ao México, onde se encontraria com Fidel Castro.
Também estão em exibição fotos menos conhecidas, em que aparece calvo, de óculos e com prótese maxilar, quando, fugindo das autoridades, fingia ser o uruguaio Adolfo Mena González.
Uma imagem que se destaca é a selfie que tirou em frente a um espelho no quarto que ocupava no hotel Copacabana, de La Paz, antes de iniciar sua última missão guerrilheira.
Memórias dos habitantes
A BBC percorreu algumas ruas de Vallegrande na companhia do professor aposentado Freddy Lacio, para tentar reconstruir os últimos dias de Guevara, que mudariam para sempre a história do povoado. Desde 1967, ele compartilha com seus compatriotas memórias da época da guerrilha.
"Naquela época Vallegrande estava praticamente em estado de sítio e as pessoas voltavam para casa cedo. Por isso, todos os corpos dos guerrilheiros desapareciam à noite", diz Lacio.
Durante os 30 anos em que os restos de Guevara estiveram desaparecidos, nenhum morador de Vallegrande declarou publicamente saber onde estava seu corpo, mas todos ouviram em algum momento - de algum vizinho - histórias sobre o assunto.
Lacio conta que seu irmão, que morreu há alguns anos, era simpatizante de Guevara e que tirou várias fotos do corpo - e guardou uma mecha de seu cabelo - quando este foi exibido pelas autoridades. Ele ainda guarda uma das fotografias.
Segundo o professor, a imprensa internacional chegou a oferecer dinheiro a seu irmão para que revelasse o paradeiro de Che. Mas ele não quis que os restos de Guevarra fossem levados, por isso nunca colaborou com as buscas.
Seu lugar na história
Para que se pudesse assegurar a importância histórica de Vallegrande como a cidade onde Che Guevara foi enterrado, o ex-prefeito Alfredo García chegou a emitir um decreto em 1997 para que os restos mortais do guerrilheiro ficassem no local, o que não ocorreu. Seu objetivo era que não deixassem o povoado "de fora da história".
"Para a gente, é como se Bolívar tivesse passado por aqui", diz ele à BBC. "Não se pode tirar Vallegrande de um acontecimento histórico tão importante do século passado."
Segundo o ex-prefeito, foi para preservar essa memória que muitos moradores de Vallegrande mantiveram silêncio por 30 anos. "Havia gente que sabia", diz.
A pesquisadora cubana Adys Cupull, que desde os anos 1980 visita a Bolívia em busca de dados sobre o passado de Che Guevara, tem a mesma percepção. "Essa é a importância dessa gente humilde que por 30 anos guardou esse segredo e cuidou do lugar onde os restos (de Guevarra) estavam enterrados", disse ela ao jornal cubano Granma.