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O vírus que o governo australiano importou da América do Sul para matar coelhos

Pequenos animais foram importados da Europa para a caça esportiva, mas se proliferaram sem controle; destruição agropecuária levou governo à apelar à guerra biológica.

27 mai 2018 - 19h51
(atualizado às 20h28)
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"Não exagero quando digo que o solo literalmente se movia. A quantidade de coelhos era tão grande que, se você caminhasse pelo campo, teria a sensação de que o pasto caminhava junto."

É assim que o criador de animais Bill McDonald recorda a invasão de coelhos que devastou zonas rurais da Austrália por volta dos anos 1950.

O número de coelhos chegou aos bilhões, que destruíram pastos, raízes de plantas e colheitas e impactaram duramente a criação de gado e a agricultura - além de evidenciarem os perigosos efeitos da descontrolada ação humana sobre a natureza.

As autoridades australianas só conseguiram conter a crise com a ajuda de um vírus identificado no Uruguai e que acabou sendo empregado em uma guerra biológica contra os pequenos mamíferos.

Coelhos na Austrália em 1938: animais foram 'importados' para a caça esportiva, mas se proliferaram descontroladamente
Coelhos na Austrália em 1938: animais foram 'importados' para a caça esportiva, mas se proliferaram descontroladamente
Foto: WIKIMEDIA COMMONS / BBC News Brasil

Efeito catastrófico inesperado

Como se chegou a tal ponto? Foi por acaso.

Os coelhos haviam sido introduzidos na Austrália vindos da Europa, em meados do século 19.

Foram transportados para ali para serem usados na caça esportiva, mas em pouco tempo os animais passaram de vítimas a algozes.

Com uma proliferação descontrolada, os coelhos da Austrália se converteram em um exemplo catastrófico de o que pode acontecer quando uma espécie estrangeira é introduzida em um novo ambiente.

O programa de rádio BBC Witness entrevistou McDonald, hoje com 88 anos, para entender a dimensão da crise.

MacDonald até hoje se dedica a sua granja de ovelhas na Austrália
MacDonald até hoje se dedica a sua granja de ovelhas na Austrália
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ele foi criado na granja de sua família, em Nova Gales do Sul, que havia sido fundada por seu bisavô escocês em 1863.

Na década de 1930, a invasão de coelhos já havia se convertido em um problema sério em todas as zonas rurais australianas.

A maioria dos agricultores os caçava. Também construíam cercas quilométricas, mas os animais sempre conseguiam escapar.

A situação se agravou com a Segunda Guerra Mundial, que forçou a ida de muitos australianos à Europa para combater.

McDonald lembra de quando, aos 10 anos de idade, ficou sozinho com a mãe em sua granja.

"Durante a guerra, o controle de coelhos foi praticamente inexistente. Simplesmente não havia mão de obra suficiente (para contê-los), então os coelhos tiveram total liberdade."

As terras foram devastadas. Os coelhos comeram toda a folhagem, as raízes e os tubérculos, deixando o solo arrasado e desprotegido contra a erosão.

Os mamíferos foram considerados a maior ameaça da história da agricultura do país.

O simpático animal acabou se tornando o inimigo número um da produção agropecuária australiana
O simpático animal acabou se tornando o inimigo número um da produção agropecuária australiana
Foto: iStock / BBC News Brasil

Guerra aos coelhos

McDonald lembra também o impacto que a praga teve sobre seu gado.

"As ovelhas ficaram fracas, então você não conseguia obter a quantidade nem a qualidade desejadas de lã."

Assim, as autoridades acabaram incentivando os fazendeiros a empreender verdadeiras batalhas contra os mamíferos.

Uma tática comum era construir cercados para atrair coelhos, prendê-los e matá-los com veneno. Tocas e túneis também eram envenenados com gás e destruídos com tratores.

McDonald conta que, diariamente, tinha de recolher "centenas e mais centenas" de animais mortos cruelmente pelos efeitos dos venenos.

Mas nem isso foi capaz de conter o avanço dos mamíferos, a ponto de o governo partir para uma guerra biológica: encontrou uma doença proveniente da América do Sul que afetava apenas populações de coelhos.

Foto de 1937 mostra coelho com mixomatose sendo liberado para infectar outros na Austrália; país teve de voltar a adotar a guerra biológica mais tarde
Foto de 1937 mostra coelho com mixomatose sendo liberado para infectar outros na Austrália; país teve de voltar a adotar a guerra biológica mais tarde
Foto: CSIRO/WIKIMEDIA COMMONS / BBC News Brasil

Tratava-se da mixomatose, doença infecciosa causada por um vírus, o myxoma, que é transmitido por mosquitos.

A mixomatose foi descoberta no Uruguai no fim do século 19 em coelhos também importados. A infecção causa tumores na pele e nas membranas mucosas dos coelhos.

Era algo "muito duro" de ver, diz McDonald.

"Os genitais dos coelhos ficavam deformados, e a maioria deles ficava cega antes de morrer. Eles também perdiam muito peso porque não conseguiam comer."

No entanto, ele diz que não teve "nenhum escrúpulo" em lançar mão do vírus nas suas terras.

"Era uma batalha que já havíamos perdido antes em termos de controle dos coelhos. E, se eu quisesse criar ovelhas e produzir lã, não podia me dar ao luxo de pensar se estava certo ou não. Eu simplesmente tinha de fazê-lo."

Coelho com mixomatose: doença provoca efeitos cruéis nos animais
Coelho com mixomatose: doença provoca efeitos cruéis nos animais
Foto: Piet Spaans/WIKIMEDIA COMMONS / BBC News Brasil

Dezenas de milhões de coelhos sucumbiram ao vírus e, em grande parte da Austrália, mais de 90% dos animais foram mortos, dando estímulo à produtividade rural.

Com o tempo, porém, alguns coelhos desenvolveram imunidade à mixomatose, e suas populações voltaram a crescer.

Por conta disso, nos anos 1990, o governo australiano adotou uma nova arma biológica, o calicivírus, que voltou a reduzir a quantidade de animais. De novo, muitos conseguiram se imunizar - portanto, a batalha continua.

McDonald diz que continua preocupado com a situação.

"As novas gerações não sabem o que aconteceu nos anos 1930, 40, 50, e acho que os coelhos podem voltar a ser um problema no futuro se não trabalharmos duro para freá-los", opina.

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