Penso nele todo dia, diz mãe que teve filho roubado pelo governo australiano
No final da década de 1960, Patricia Lange e Margaret Hamilton tiveram seus filhos tirados pelo governo australiano , em uma política chamada hoje de "White Stolen Generation" (Geração Branca Roubada)
17 de outubro de 1968. Dentro da sala de parto de um hospital em Brisbane, a mãe de 20 anos dá à luz o primeiro filho. No boletim médico, um carimbo sela o destino do menino: "BFA", Baby For Adoption (Bebê para Adoção). Mãe solteira no final da década de 1960, Patricia Lange nunca viu a criança, não pôde tocá-la nem amamentá-la e perdeu o crescimento do garoto para uma política do governo australiano, hoje conhecida como "White Stolen Generation" (Geração Branca Roubada). "Naquela época, era vergonhoso ter filhos sem pai", lamenta Patricia. Por isso, o governo tirava as crianças das mães para entregá-las a casais que, em geral, não podiam ter filhos.
Logo que seus pais souberam que estava grávida, Trish - como é conhecida - foi mandada para a casa de outra família para trabalhar. "Meus pais não me deixariam voltar para casa, porque não queriam que os vizinhos e amigos soubessem", conta. Ela trabalhou 12 horas por dia por US$ 10 por semana até o momento do parto. No hospital, Trish foi amarrada à cama e sedada com morfina, ganhou o filho, mas não lembra sequer do choro do bebê. "Eles me ameaçaram com prisão e deportação, para me forçarem a assinar os papéis da adoção", explicou.
Imigrante inglesa, ela ainda não tinha cidadania australiana. "Eu estava sozinha, com medo, sem dinheiro, em um país estrangeiro. Não tinha condições de voltar para a Inglaterra, onde minha avó teria me ajudado", garante. O pai da criança, que tinha 17 anos na época, desapareceu. "Eles não rastreavam os pais, porque seriam obrigados a pedir a permissão dos homens também", diz. Os dois eram menores de idade (21 anos), de acordo com a lei da época.
Assim como o filho de Trish, pelo menos 150 mil crianças foram retiradas das mães solteiras nas décadas de 1960 e 1970 na Austrália. Na semana passada, a primeira-ministra Julia Gillard pediu desculpas oficiais, na sede do Parlamento. "Pedimos desculpas a vocês, mães que foram traídas pelo sistema, submetidas à manipulação, a um tratamento injusto e a práticas antiéticas, desonestas e, em muitos casos, ilegais. Pedimos desculpas porque queremos corrigir um registro histórico, declarando que essas mães não fizeram nada errado, que vocês amavam seus filhos e sempre os amarão", declarou Gillard, diante de um auditório de cerca de mil mães, pais e filhos adultos.
O pedido oficial de desculpas alivia a dor, mas não apaga a história. Trish procurava o filho em carrinhos de bebê, nas saídas de escola, em parques de crianças. "Buscava qualquer rostinho que poderia parecer com ele e conversava com os pais para sondar se a criança era adotada. Fiquei viciada em trabalho para tentar sobreviver", recorda, aos 64 anos.
Margaret Hamilton, hoje com 66 anos, também lembra das tentativas de encontrar o filho perdido. "Não conseguíamos qualquer informação oficial sobre o paradeiro deles", esclarece.
Aos 19 anos, Margaret foi afastada da família e colocada em um lar para adolescentes grávidas. Era 1965 e cerca de 30 garotas permaneciam isoladas até o nascimento dos bebês. Em trabalho de parto, a jovem foi sozinha para o hospital, recebeu uma injeção, teve o filho e acordou cinco dias depois. Antes mesmo de vir ao mundo, o governo já havia decidido que aquele era um "BFA", Baby for Adoption. Ainda parcialmente sedada, Margaret assinou os papéis.
Segundo ela, foi uma lavagem cerebral. "Eles me convenceram de que não havia opções e me chamaram de egoísta, dizendo que eu queria manter um filho bastardo que não teria condições de criar solteira", destacou. Diferente da maioria, ela conseguiu enxergar o filho uma vez, pelo vidro da maternidade. Nunca mais esqueceu o rosto, que procuraria desesperadamente nos carrinhos de bebê, nas saídas de creches, nos parquinhos infantis. "Ele era lindo e eu ainda posso ver nitidamente aquela carinha bonita até hoje. Pensei nele todos os dias da minha vida", afirma.
O pai do filho de Margaret também desapareceu. "Era um sistema que beneficiava todos eles: os pais que não queriam se incomodar, as famílias envergonhadas, os casais inférteis, o governo e a sociedade como um todo", analisa. O sofrimento das mães solteiras era apenas o efeito colateral da política conservadora. Independente das desculpas formais, difícil é superar a dor dos anos passados. "Está tudo perdido. Esse afastamento causou uma distância emocional que nunca mais poderemos recuperar, já que nunca criamos o vínculo que deveríamos ter", avalia.
Os arquivos oficiais foram abertos em 1991. Trish e Margaret encontraram os filhos, que não quiseram dar entrevistas. Filho de Trish, Darren tem 44 anos, é casado e tem três filhos. "Quando o vi pela primeira vez, aos 21 anos, fiquei feliz porque ele parecia com meu avô. Agora, tento enxergá-lo nos rostos dos meus netos", coforma-se. Também casado, o filho de Margaret tem 47 anos e dois filhos. "Ele não sabia que era adotado e sente que está traindo os pais adotivos; então, tento me contentar com o carinho que ele pode me oferecer", conclui.
A primeira-ministra Julia Gillard anunciou a liberação de AU$ 11,5 milhões (cerca de R$ 25 milhões) para a união das famílias e o tratamento psicológico de mães e filhos, mas o projeto ainda não foi votado pelo Congresso. Em fevereiro de 2008, o governo australiano também pediu desculpas oficiais à "Stolen Generation" (Geração Roubada) de crianças aborígenes que foram afastadas das famílias por causa da cor da pele. Conhecidas como "half-caste" (meia-casta), elas eram filhas de mães aborígenes e pais europeus. Entre 1910 e 1970, cerca de 100 mil crianças com raça mista foram entregues a casais brancos para assimilar a cultura dos colonizadores.