Especialistas: crise no Iraque pode fragmentar toda a região
Professor afirma que é um grande erro tratar a atual situação como algo estritamente iraquiano ou sírio e acrescenta que o envolvimento dos EUA na crise não deve ajudar a solucionar o conflito
De volta às manchetes da mídia ocidental, o Iraque vive uma retomada da escalada de violência, que está a ponto de se tornar uma nova guerra civil. Muitas cidades foram tomadas pelo grupo rebelde Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) e o conflito deixou de ser encarado como nacional, passando a ser regional.
Até 2011, o Iraque foi protagonista de grande parte das notícias internacionais devido à guerra, que teve início em 2003. No entanto, mesmo que boa parte do Ocidente tenha ‘ignorado’ o país nos últimos dois anos, tecnicamente, o cenário de guerra nunca deixou de existir na região.
“A fragmentação do Iraque é um processo que está em curso desde a queda de Saddam Hussein. A insurgência sunita também já é um fenômeno de longa data”, lembrou o professor-doutor do Instituto de Relações Internacionais da USP, Kai Enno Lehmann. “Em outras palavras, o que está acontecendo não é, ou não deveria ser, uma grande surpresa”, conclui.
O professor explica que o EIIL é um grupo surgido após uma ruptura da Al-Qaeda no Iraque. Inicialmente composto por sunitas, o grupo também conta com o apoio de muitos jihadistas estrangeiros, que lutam na Síria e no Iraque.
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O que ocorre atualmente nas terras iraquianas teria ampla relação com o que acontece no território sírio já há muito tempo. “De fato, faz parte do mesmo processo pelo qual está passando todo o Oriente Médio, somente sendo expresso de forma diferente particulares em países”, afirma o professor, que acredita ser um grande erro ver o que está acontecendo na região como algo estritamente ‘iraquiano’ ou ‘sírio’. Ou seja, a situação não é um problema nacional, mas regional. “O fim desse processo é completamente imprevisível”, garante Lehmann.
Para a professora de Relações Internacionais da Unifesp, Cristina Pecequilo, a região está toda ‘contaminada’. “O cenário é de crise na região e contamina o entorno, seja por meio do conflito direto, como pela geração de refugiados, ou pelo fortalecimento de forças radicais. Não é um cenário de estabilidade e todos os países – mesmo os mais sólidos como Irã e Turquia – percebem a existência de riscos”, comenta.
Qual o teor da disputa?
Embora, inicialmente, a disputa entre sunitas e xiitas tenha cunho religioso, o que acontece no Iraque não é baseado apenas em crenças. Existem motivações financeiras e regionais na jogada. “A disputa é política, por controle territorial de zonas estratégicas do país, tanto em termos geopolíticos como geoeconômicos, por conta da produção de recursos energéticos, ou seja, do petróleo”, diz a professora. Segundo ela, as questões religiosas não são o centro da discussão, mas é o que motiva a mobilização dos mais pobres.
Lehmann defende ainda que existe um apoio financeiro vindo de países do Golfo. “De acordo com Robert Fisk, um dos especialistas mais bem conhecidos, que mora no Oriente Médio, a Arábia Saudita é um dos principais financiadores dos rebeldes sunitas que agora controlam parte do Iraque e da Síria”, lembra o pesquisador.
Esses motivos, inclusive, ajudam a entender que a crise na região merece o olhar ocidental. “Temos a questão energética, temos a questão de Israel, temos o fato de um dos principais aliados do Ocidente (Arábia Saudita) estar diretamente envolvido no conflito, temos a questão dos refugiados, temos o papel histórico do Ocidente na região... Em outras palavras, existem mil fatores que explicam tal interesse”, afirma Lehmann.
O que podemos esperar?
“Caso o confronto se prolongue, podemos ter um cenário que se deteriora gradualmente, como na Síria, e sem perspectiva de solução próxima”, analisa Cristina. Para Lehmann, o confronto já está levando à fragmentação não só do Iraque, mas de toda a região.
No último domingo, o EIIL anunciou o restabelecimento de um califado na região - regime político islâmico encerrado há um século. Com isso, o líder do grupo, Abu Bakr Al-Baghdadi, foi designado o “califa” e, portanto, o “chefe dos muçulmanos em todas as partes do mundo”. Esse califado deve ser imposto nas regiões conquistadas pelo grupo na Síria e no Iraque.
Além disso, a professora, que também é autora do livro Os Estados Unidos e o Século XXI, garante que o envolvimento do país norte-americano na crise iraquiana não deve ajudar a solucionar o conflito.
“Os EUA não foram capazes de resolver a situação até 2011, em termos políticos. A presença militar, o envio de analistas e forças especiais como tem sido anunciado e iniciado nestas últimas semanas, dificilmente resolverá a situação mais uma vez. A questão é de dentro para fora”, analisa.
Talvez a ajuda ocidental não seja de bom proveito e possa agravar ainda mais a crise. Assim, aos países do lado oeste do globo, acompanhar, mesmo que de longe, cada novo episódio da grave crise do Oriente Médio se faz necessário e pode ser a melhor escolha.