Os brasileiros que tentam provar que o homem chegou à Antártida antes do 'descobrimento oficial'
Paisagens em branco e sítios arqueológicos congelados ajudam a reescrever a história do inóspito continente, que remontaria ao século 18; nova expedição começa no dia 3, e irá durar 40 dias.
Um grupo de arqueólogos brasileiros está ajudando a reescrever a história daquele que é o continente mais misterioso do mundo: a gélida e ainda pouquíssimo explorada Antártida.
Em uma saga que começou há mais de 20 anos, o arqueólogo argentino Andrés Zarankin, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), capitaneia uma equipe com outros cinco pesquisadores que embarca no próximo dia 3 para cerca de 40 dias de expedição pelo continente de gelo.
A expectativa é seguir coletando indícios que provem que a Antártida teve presença humana anterior à escrita oficial, ou seja, muito antes das famosas expedições de europeus no século 19 e início do século 20.
No ano passado, por exemplo, os pesquisadores encontraram restos de sapatos e garrafas de vinho e cerveja que provavelmente foram deixados ali por caçadores de focas, baleias e leões-marinhos do fim do século 18.
"Atualmente se sabe que os primeiros grupos a ocuparem o continente, a fins do século 18 ou início do 19, foram os caçadores de mamíferos marinhos de diversas nacionalidades que formavam parte das tripulações e navios de companhias privadas e viajavam até lá para obter peles e gorduras desses animais", explica o professor.
"Da pele desses animais eram fabricadas roupas no comércio europeu e chinês; e da gordura, era manufaturado um óleo utilizado para iluminação pública urbana e como lubrificantes das máquinas das indústrias em expansão. As informações sobre esses grupos, assim como os vestígios materiais deixados pelos mesmos, foram e são encontradas nos sítios arqueológicos."
Ou seja, antes das histórias de ilustres expedicionários europeus, como o registro do capitão inglês William Smith (1790-1847) que, em 1819, chegou até as ilhas
Shetlands do Sul e acabou galgando seu lugar na historiografia oficial como o primeiro homem a pisar na Antártida.
Ou ainda do norueguês Roald Amundsen (1872-1928), o primeiro a pisar no Polo Sul, em 1911. Ou o britânico Robert Scott (1868-1912), que foi à Antártida em duas expedições, a primeira em 1901.
Sítios arqueológicos
A pesquisa coordenada por Zarankin foi criada em 1995 a partir de um descobrimento casual de restos arqueológicos na Antártida - um material precioso encontrado por geólogos argentinos.
Há dez anos o projeto integra o Proantar, o Programa Antártico Brasileiro. Toda a pesquisa, que já acumula mais de mil itens coletados, é liderada pelo Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas da UFMG, o Leach.
Expedições in loco são organizadas e realizadas praticamente todos os anos, sobretudo nas ilhas Shetland do Sul, considerada uma área de grande biodiversidade. "Parte de nossa equipe esteve lá em novembro e encontrou novos sítios arqueológicos. Agora vamos escaneá-los", conta o pesquisador.
Hoje, eles estão se dedicando a utilizar um equipamento que capta imagens em 3D desses locais. Graças a uma parceria com o Google, em breve qualquer pessoa poderá conferir, via internet, como são esses locais de pesquisa.
"Isso representa importante passo para a democratização do conhecimento e preservação da memória da Antártida", diz Zarankin.
Para o professor, fazer pesquisas arqueológicas em condições abaixo de zero tem uma boa vantagem: a conservação do material. Afinal, a Antártida funciona como um grande freezer. "Trata-se de um ambiente capaz de preservar objetos orgânicos que, em outros lugares do mundo, desapareceriam em dez anos", explica.
Pegadas do passado
Academicamente, os resultados dessa empreitada antártica já rendem bons frutos. É o caso da tese defendida em junho de 2015 por Gerusa de Alkmim Radicchi, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.
Ela estudou os sapatos utilizados pelos caçadores no século 19 nas ilhas Shetland do Sul. A pesquisadora utilizou parte do acervo coletado nas expedições à Antártida e analisou como os calçados eram incorporados ao cotidiano desses homens.
"Os modelos e a forma de utilização sinalizam produção em massa e consumo padronizado. Eles trazem marcas de intenso uso e reparos. O pequeno tamanho dos calçados pode ser uma evidência da baixa faixa etária dos caçadores", relata a pesquisadora.
Radicchi concluiu que os sapatos foram feitos artesanalmente, já que não encontrou evidências de uso de máquinas de costura ou outras tecnologias.
Os lobeiros-baleeiros tinham diferentes nacionalidades: havia americanos, ingleses, espanhóis, portugueses, açorianos, cabo-verdianos, argentinos e brasileiros, entre outros. Eram contratados por companhias internacionais, geralmente dos EUA.
Eles eram, em geral, jovens adultos ou até mesmo adolescentes. Ficavam atraídos por promessas de ganhos exorbitantes nessas expedições, já que tinham uma pequena participação nos lucros do que fosse conseguido. Entretanto, como precisavam pagar por todo o material e despesas pessoais em um endividamento prévio, anterior à viagem, acabavam ficando com um saldo final pequeno.
Durante a empreitada, era comum que os sapatos ficassem para trás, já que acabavam extremamente gastos, cheios de consertos e remendos, segundo a pesquisadora. Por isso, é grande a quantidade desse tipo de material encontrada pelos arqueólogos.
Em outro trabalho, que resultou em dissertação de mestrado defendida na mesma UFMG em 2014, a antropóloga María Jimena Cruz investigou o que esses caçadores de focas e lobos comiam e o que caçavam.
Há vestígios de garrafas que, após análises, os pesquisadores concluíram se tratar de antigos recipientes para cerveja. Também foram encontrados resíduos de cereais, como milho e trigo.
Já a pesquisadora Sarah Viana Hissa focou seus estudos em buscar entender como os operários conseguiam perceber o tempo - mesmo em uma terra onde não há noite no verão.
Ela concluiu que, ao contrário da vida nas cidades, onde o dia a dia já era controlado por uma rotina estanque entre trabalho, lazer e descanso, tudo sob o relógio, os caçadores acabavam concentrando longas e intensas jornadas de caçadas - que, depois, eram compensadas com dias de descanso.
As marcas do tempo também eram observadas por eles a partir dos desgastes dos materiais - afinal, uma vez terminados os provimentos, era hora inevitável de voltar para casa.