Os médicos têm obrigação de tratar pessoas com ebola?
O presidente do Banco Mundial fez um apelo para que profissionais de saúde se voluntariem para a batalha contra o ebola, invocando seu juramento de ajudar pacientes. Mas existe esta obrigação? Daniel Sokol, especialista em ética médica, diz que devemos esperar que alguns profissionais se recusem a ir ao trabalho onde hajam pacientes com o vírus sendo tratados
Quando vários casos de ebola emergem em um determinado país, é ingênuo pensar que nenhum profissional de saúde se recusará a ir ao trabalho.
Em todas as grandes epidemias de ebola, profissionais de saúde deixaram de trabalhar em centros de tratamento, deixando pacientes à beira da morte para trás. Esta não é exceção.
Ao ver colegas sucumbirem à doença, muitos médicos, enfermeiras e técnicos de laboratório deixaram de comparecer ao trabalho, colocando ainda mais pressão sobre aqueles que foram trabalhar.
Em 2003, eu trabalhava como um residente em ética clínica em um hospital de Toronto, no Canadá. Esta foi a cidade mais afetada pela gripe aviária fora da Ásia, com cerca de 250 pessoas infectadas. Destes, metade eram profissionais de saúde. Cartazes nas paredes do hospital saudavam os membros da equipe como heróis.
Na realidade, muito deles estavam estigmatizados por sua comunidade. Alguns profissionais de saúde de Toronto não foram trabalhar temendo por sua própria saúde e de sua família, e alguns reclamaram que seus colegas em um hospital próximo recebiam um pagamento extra pelo perigo de cuidar de pacientes com a gripe enquanto eles não recebiam nada.
Este era um dos melhores hospitais do mundo, com instalações maravilhosas e uma equipe muito bem treinada. A taxa de mortalidade era de 16%.
Na atual epidemia de ebola, profissionais de saúde também foram afetados, mas, em contraste com a situação em Toronto, a infraestrutura médica em países africanos é precária e os hospitais carecem de profissionais. A taxa de mortalidade é de cerca de 55%.
As equipes médicas enfrentam o risco de ostracismo e violência por parte da população local hostil. Muitos profissionais ganham muito pouco e, em alguns casos, não recebem salários há meses.
Na epidemia de ebola em Uganda em 2000, houve um grande protesto no hospital St. Mary, na cidade de Lacor.
Depois da morte de vários profissionais do hospital, cerca de 400 membros de sua equipe se reuniram na frente do hospital, ameaçando deixar de ir trabalhar.
Matthew Lukwiya, o superintendente médico do hospital, os convenceu a ficar. Pouco depois, ele contraiu a doença depois de cuidar de uma enfermeira infectada sem usar óculos de proteção e morreu.
Dado o alto risco, as condições de trabalho ruins e o estigma de cuidar de pacientes de ebola, não é uma surpresa que muitos profissionais de saúde tenham deixado os epicentros da epidemia de ebola e que outros relutem em se unir ao combate ao vírus.
O juramento hipocrático data do século 5 a.C. e não trata de como médicos devem se comportar em caso de epidemias. Além disso, apenas uma minoria dos médicos faz o juramento ao se formar.
No Reino Unido, o Conselho Geral de Medicina diz que um médico "não pode negar tratamento a pacientes se sua condição os colocar em risco".
Diante dos recursos britânicos, é improvável que o ebola represente um grande risco para profissionais de saúde, mas, em partes da África onde faltam até mesmo luvas de borracha, a situação é bem diferente.
Em troca do oneroso dever imposto pelo conselho de medicina, médicos britânicos esperam que as autoridades forneçam treinamento, pagamento e equipamentos adequados.
Ainda assim, para muitos dos médicos que lutam contra o ebola, nada disso foi oferecido.
Estes profissionais têm o dever de cuidar de pacientes, mas esse dever tem limites.
Há uma série de fatores que determinam estes limites. Um deles é o nível de risco ao qual o profissional será submetido.
Trabalhar em hospitais mal equipados e que carecem de profissionais é mais arriscado do que fazer o mesmo em um hospital moderno.
Outro fator é o dever com outros pacientes. O ebola não impediu que pessoas padeçam de outros males.
Um médico que morre por causa de ebola não pode cuidar de outros pacientes. Há apenas cerca de 50 médicos na Libéria para uma população de 4 milhões. A perda de um único médico é um desastre de saúde pública.
Por fim, estes profissionais também têm deveres com suas famílias e comunidades. Um médico não é apenas um médico, mas também um pai, um filho, um irmão, um líder comunitário e assim por diante. Cada um destes papéis traz deveres. Então, o dever médico com um paciente deve ser mais importante do que o dever com seus filhos?
Alguns gestos vão além do que o dever exige. Muitos profissionais cuidando de pacientes de ebola em péssimas condições, apesar do risco para eles próprios, estão agindo além deste dever. Eles merecem ser parabenizados.
Para os outros, que deicidiram manterem-se longes, devemos ter cuidado ao críticá-los antes de considerar as circunstâncias individuais.
Daniel Sokol, PhD, um advogado especializado em bioética de Londres, no Reino Unido.