Padres ortodoxos criticam guerra e mostram cisão entre russos
Oficialmente, Patriarcado de Moscou não condenou conflito
Sete dias após o início dos ataques da Rússia contra a Ucrânia, um grupo de 233 padres e diáconos ortodoxos russos publicou um comunicado em que condenam o conflito e chamam o combate de "guerra fraticida".
O número de assinaturas tende a aumentar, já que o documento foi enviado para todos os sacerdotes do país.
"Choramos o calvário que nossos irmãos e irmãs na Ucrânia estão sendo submetidos imerecidamente", diz o documento divulgado pelo portal católico de notícias "Vatican News". O texto ainda fala do "juízo universal" e ressalta que toda a vida "é um dom único e inestimável" de Deus.
"Nenhuma autoridade terrena, nenhum médico, nenhum guarda protegerá as pessoas desse julgamento. Preocupados com a salvação de cada pessoa que se considera um filho da Igreja Ortodoxa Russa, não queremos que chegue esse juízo levando o pesado fardo das maldições maternas. Lembramos que o sangue de Cristo, dado pelo Salvador para a vida no mundo, será recebido no sacramento da Comunhão por aqueles que dão ordens a homicídios, não pela vida, mas para o tormento eterno", diz o documento.
Os representantes pedem um "imediato cessar-fogo e a reconciliação" e ressaltam que o período de Quaresma seja "um convite ao diálogo". "Nenhum apelo não violento para a paz e para o fim da guerra deve ser rejeitado com a força e considerado como uma violação da lei porque esse é o comando divino: beatos sejam os operadores da paz", acrescentam os religiosos.
Os padres e diáconos se distanciam assim das lideranças da Igreja Ortodoxa Russa, guiada pelo Patriarca Cirilo, e que nos últimos anos se aproximou de maneira intensa com o governo do presidente Vladimir Putin. Nenhum alto representante religioso está entre aqueles que assinaram o apelo e, até o momento, o Patriarca não condenou abertamente os ataques russos.
A carta acirra ainda mais a cisão que vem ocorrendo dentro do mundo ortodoxo e que se intensificou em outubro de 2018 quando os russos romperam formalmente com o Patriarcado Ecumênico de Constantinopla pela decisão de conceder autocefalia a duas igrejas ortodoxas, justamente, da Ucrânia.
Crise
O cisma entre os ortodoxos começou após o patriarca Bartolomeu, considerado um "guia supremo" de todos os praticantes da religião, enviar dois exarcos para Kiev, capital da Ucrânia, para iniciar os trabalhos da chamada autocefalia - quando uma determinação cristã não precisa se reportar a um superior - nas igrejas Ortodoxa Ucraniana e Ucraniana Ortodoxa Autocéfala. Fato que foi formalizado em setembro de 2018.
Em outubro do mesmo ano, após um sínodo realizado em Minsk, capital de Belarus, o metropolita Hilarión, responsável pelas relações exteriores da Igreja Russa, afirmou que não era mais possível continuar com a ligação "eucarística" que existia com Constantinopla e com o patriarca Bartolomeu, considerado o "primeiro entre os iguais" .
O caso encerrou um pedido dos ucranianos iniciado desde sua independência da União Soviética, em 1991. Desde aquele ano, a Ucrânia já havia ensaiado por diversas vezes a criação de uma igreja ortodoxa local que não tivesse vínculos de hierarquia com Moscou.
O pedido aceito por Constantinopla havia sido enviado em 2014, em meio aos conflitos entre os separatistas pró-Rússia de Donetsk e Lugansk e após a anexação unilateral da Crimeia. O documento formal foi enviado pelo então presidente, Petro Poroshenko, com aval do Parlamento, antecessor do atual mandatário, Volodymyr Zelensky, ambos com postura pró-Ocidente.
O Patriarcado Ecumênico aceitou a opinião ucraniana de que a união entre Moscou e Kiev, adotada em 1686, tinha apenas caráter temporário e que o país sempre foi considerado um "território ecumênico".
Cristãos na Ucrânia
Tal qual a população do país, as religiões cristãs na Ucrânia também são bastante divididas. Além dos ortodoxos que seguem o Patriarcado de Moscou ou de Kiev, há duas organizações católicas - a de rito latino e a greco-católica. Também há forte presença da Igreja Protestante e dos Testemunhas de Jeová.
O presidente da Pontifícia Academia para a Vida do Vaticano, monsenhor Vincenzo Paglia, ressaltou que em toda essa crise também "pagamos pelas divisões internas entre as confissões cristãs".
No meio de tudo isso, antes da explosão da guerra, estava sendo organizado um segundo encontro entre o papa Francisco e Cirilo I depois do encontro realizado em 2016 em Cuba. A reunião em Havana foi a primeira em mais de mil anos entre os chefes das igrejas Católica e Ortodoxa.
O embaixador russo na Santa Sé, Aleksandr Avdeev, havia dito, há cerca de duas semanas, que a reunião deveria ocorrer entre "junho e julho" deste ano, mas agora, o cenário voltou a ser de incerteza.
Até porque Francisco já condenou publicamente a guerra por mais de uma vez, algo que não foi visto do lado de Cirilo. .