Passageiros brasileiros se tornam alvo na Etiópia com alta em apreensões do tráfico
Aumento no tráfico de drogas e uso de mulas é acompanhado, também, da detenção de pessoas inocentes - que chegam a passar dias na cadeia.
Era para ser apenas uma escala de menos de cinco horas no aeroporto de Adis Abeba, na Etiópia, mas o dentista Ricardo Alves dos Santos acabou preso pela polícia local, apesar de ser inocente.
Ele iria para Jacarta, na Indonésia, como parte de uma viagem de férias tendo o Vietnã como destino final.
Por ser mais barato, o pernambucano que mora em Florianópolis comprou as passagens separadamente.
Ao desembarcar na capital do 30º país do seu histórico de viagens, no dia 18 de fevereiro, foi chamado para prestar esclarecimentos sobre uma mochila com 27kg de cocaína encontrada no bagageiro do avião, bem acima da poltrona em que ele viajou.
Além de Ricardo, uma brasileira e um nigeriano (que sentaram na mesma fileira que ele) foram questionados pela polícia sobre a mochila.
Ela, que não sabia falar inglês e aguardava um voo para Johannesburgo, na África do Sul, foi liberada. O nigeriano e o brasileiro acabaram dormindo no aeroporto em uma sala vigiada por policiais.
No dia seguinte foram algemados, juntos, e levados para um hospital, onde fizeram raio-x para comprovar que não tinham engolido drogas. Em seguida foram levados para a sede da Polícia Federal etíope.
"Eu saí várias vezes algemado, tive que fazer radiografia do estômago, peguei uma pneumonia, e ainda teve todo o estresse psicológico", desabafou.
Ricardo era o 20º detento daquela cela que, segundo ele, não devia ter mais que 40 metros quadrados, onde também estavam dois brasileiros - esses, de fato, haviam tentado desembarcar com drogas na Etiópia recentemente.
Foram três noites na cela fria - com apenas uma jaqueta e dormindo em um fino colchão sobre o chão -, que renderam uma pneumonia.
Detido em um sábado, só na terça-feira ele foi libertado pela Justiça etíope, mas a companhia aérea queria cobrar do brasileiro US$ 2.225 pelo bilhete de volta.
Graças à embaixada do Brasil em Adis Abeba, que designou uma funcionária para cuidar do caso, ele não foi cobrado pela passagem de volta e conseguiu autorização das autoridades para deixar o país, uma semana depois de ter desembarcado.
"Eu tinha lido relatos muito bons sobre a companhia aérea. O serviço de bordo não é nada ruim, na realidade. Mas eu não sabia que essa é uma rota de tráfico de drogas", contou surpreso o dentista à BBC News Brasil, ainda com voz rouca e nariz entupido.
Outros brasileiros já passaram por constrangimentos no aeroporto internacional de Adis Abeba nos últimos anos.
A filha de um adido militar do Brasil em um país africano fazia escala na capital etíope quando foi abordada por autoridades locais e levada para um hospital, fora do aeroporto, para fazer exames e comprovar que não havia engolido drogas.
Pelo mesmo motivo, um outro brasileiro foi forçado a defecar dentro do aeroporto. E, nesses casos, ambos viajavam com passaportes oficiais.
A desconfiança tem um motivo. "A gente sabe que praticamente em todo voo vindo de São Paulo alguma coisa é apreendida, mas a droga vem com pessoas de diferentes nacionalidades", disse uma fonte ligada ao setor de aviação na capital da Etiópia, o país africano com mais brasileiros presos atualmente.
O número saltou de 3, no início do ano passado, para 20 atualmente, sendo 14 mulheres e 6 homens. Todos foram presos pela polícia etíope tentando desembarcar com cocaína na bagagem (quase sempre de mão) ou no estômago. Quem transporta drogas desta forma é conhecido como mula.
A reportagem conversou com diversos brasileiros que ainda estão ou já estiveram presos em países africanos nos últimos anos.
A situação financeira foi usada por quase todos para justificar ter aceitado levar droga a outro país em troca de dinheiro.
Quem faz isso quase sempre não sabe a quem vai entregar a droga que leva.
Brasileiros que já foram presos afirmaram terem entregado drogas até para policiais.
Rota do tráfico
A quantidade de detentos brasileiros na Etiópia seria maior se um deles, em dezembro, não tivesse conseguido fugir enquanto era preso pela polícia.
Ele ainda estava com o passaporte quando escapou. Conseguiu chegar até a cidade de Mega, no sul do país, cerca de 640 km da capital da Etiópia, e cruzar a fronteira com o Quênia, onde pegou um voo de volta para o Brasil.
Estão presos também na Etiópia um angolano e um nigeriano naturalizados brasileiros, mas esses dois não estão sendo assistidos pela embaixada do Brasil no país.
A rota do narcotráfico passa por ali, mas, segundo autoridades ouvidas pela reportagem, a maior parte vai para países europeus, do Oriente Médio e da Ásia.
Um dos brasileiros presos no continente contou à BBC News Brasil que, muitas vezes, a droga vai por terra até o norte da África e de lá segue para a Europa - com auxílio de grupos armados envolvidos em diferentes conflitos na região.
"Uma guerra é cara, eles precisam de dinheiro para munição", disse uma fonte da Polícia Federal no Brasil, reforçando a informação sobre o envolvimento de grupos extremistas com o tráfico internacional de drogas.
Mas também há pessoas contratadas em Adis Abeba para viajarem de avião com a droga que vem do Brasil, quase sempre já embalada para ser engolida novamente.
Com relativa proximidade ao Oriente Médio e à Europa, a Etiópia também tem voos diários saindo do Brasil. Ao mesmo tempo, desde 2020 os 12 voos semanais que eram operados por duas companhias aéreas entre São Paulo e Johannesburgo foram cancelados por conta da pandemia e até hoje não foram retomados, o acesso à África do Sul está mais demorado, caro e arriscado para quem atua como mula.
Uma dessas companhias já anunciou que voltará a oferecer voos ligando as duas cidades em julho.
Mesmo sem voos diretos vindos do Brasil há quase 3 anos, a África do Sul (que chegou a ter 40 brasileiros presos em 2019) hoje tem apenas um detento brasileiro a menos que a Etiópia, sendo 16 em Joanesburgo e 3 na Cidade do Cabo.
"A tendência é: quanto mais oferta tiver de voos, possivelmente mais apreensões e mais prisões haverá", diz Daniel Justo Madruga, adido da Polícia Federal baseado em Pretória, à BBC News Brasil.
De acordo com o consulado-geral brasileiro em Lagos, voos diretos ligando Brasil e Nigéria devem ser anunciados em breve.
'Mulas desesperadas'
Preocupada com o aumento dos números de brasileiros presos e de apreensões em Adis Abeba, a Embaixada do Brasil na Etiópia já havia alertado o governo anterior sobre a necessidade de se ter um adido da Polícia Federal também no país do leste africano, onde é possível encontrar autoridades de todo o continente, por causa da sede da União Africana.
Por cadeias africanas já passaram pessoas de diferentes regiões brasileiras. Atualmente há na Etiópia pelo menos quatro do Pará, além também de cidadãos do Amazonas.
Mesmo que não sejam de São Paulo, é na capital paulista que essas pessoas costumam receber as instruções finais e aguardam a data do embarque, segundo relatos de autoridades e detentos.
Presos disseram em depoimentos e à reportagem que quase todos os traficantes que os contrataram são africanos, e aparentemente não trabalham para nenhuma grande facção do Brasil.
De acordo com a polícia etíope, entre todos os estrangeiros presos no país nos últimos dois anos por envolvimento com o tráfico de drogas, os nigerianos são maioria.
Muitos ainda estão no presídio de Kaliti, que fica a cerca de 11km do centro da capital.
É para onde foram brasileiros e estrangeiros já condenados, como uma mulher de Serra Leoa que possui um Registro Nacional de Estrangeiros concedido pela Polícia Federal brasileira.
Consta que a primeira entrada dela no Brasil foi em 2016. Depois disso, a partir de 2018, houve mais 27 entradas e saídas dela registradas em aeroportos do Brasil, de acordo com informações obtidas pela reportagem.
Desses 27 registros, 12 foram no Aeroporto Internacional de Fortaleza, e 15 no de Guarulhos (São Paulo).
A última saída dela registrada por autoridades brasileiras foi em março de 2022, quando embarcou para a Etiópia - onde acabou presa.
Oficialmente, a maioria sempre diz que foi presa atuando como mula pela primeira vez, mas os históricos nos passaportes de muitos apresentam frequentes entradas e saídas do Brasil.
Uma das brasileiras está presa pela segunda vez pelo mesmo motivo.
Ao todo, ela revelou que já fez seis viagens do tipo, incluindo para Guatemala e França, onde chegou a ficar meses na cadeia. Ela tinha uma loja de roupas com a mãe no Brasil, mas alega estava cada vez mais difícil conseguir pagar as contas.
De acordo com a criminologista sul-africana Nokonwaba Mnguni, o aspecto mais importante que as redes de narcotráfico analisam depois de estabelecer um mercado para drogas ilícitas é a força da aplicação da lei nos países africanos e se existem ou não redes criminosas bem estabelecidas e tratados de extradição em seus países de origem.
"Esse aspecto se aplica globalmente, não apenas nos países africanos", reforça, esclarecendo que "para cada mula de drogas pega por contrabando de drogas, há sempre mais uma ou duas mulas de drogas 'profissionais' que a fazem passar pela verificação de segurança no aeroporto".
Como a maioria disse não ter despachado mala com drogas dentro, nem sempre embarcam sabendo a quantidade que transportarão.
Durante o voo, traficantes - que normalmente já engoliram a droga e no meio da viagem colocam tudo para fora no banheiro do avião - escondem o que está sendo traficado nas bagagens de mão que as mulas devem pegar antes ao desembarcarem.
Um dos presos mais recentes contou que, ainda no Brasil, recebeu dois chips para celulares: um da Etiópia e outro da África do Sul, destino final da viagem.
A ordem era usar o chip para ligar para alguém em Adis Abeba que indicaria por onde passar com a bagagem.
E assim que entregasse a droga, a ordem era fazer uma chamada de vídeo para quem o contratou no Brasil registrando a entrega.
Mãe e bebê na cadeia
No presídio em Adis Abeba também está um brasileiro que não cometeu crime algum. Ele completou cinco meses de vida recentemente. Nasceu em setembro em um hospital.
O menino viajou na barriga da mãe, uma jovem que estava grávida de dois meses, recém-separada e "desesperada, precisando de dinheiro" quando aceitou a proposta de uma nigeriana no Brasil para levar uma "quantidade pequena" de cocaína para a Etiópia. Receberia R$ 10 mil pelo serviço.
A brasileira ficou dois meses em um hotel em São Paulo, esperando o dia do embarque. Foi durante o voo de Guarulhos para Adis Abeba que um homem a cutucou e apontou para a mala que estava no bagageiro e que ela deveria pegar antes de descer do avião.
A versão dela foi muito similar à contada em depoimento pela maioria dos brasileiros presos atualmente na Etiópia.
Ainda segundo Nokonwaba Mnguni, que também é pesquisadora especializada em criminalidade feminina e crime organizado transnacional, cada vez mais mulheres de origem pobre são procuradas para contrabandear drogas.
"Globalmente, as mulheres são as mais desfavorecidas - são o sustento de suas casas e famílias. (...) É importante notar, porém, que algumas foram coagidas a traficar drogas, e nem todas as mulheres encarceradas estão cientes do crime que cometeram anteriormente", disse.
Não é a primeira vez que uma brasileira grávida acaba presa na Etiópia. Uma outra deu à luz no país em outubro de 2018, mas foi libertada com a criança em janeiro de 2019. Outra foi presa em janeiro do ano passado e liberada em abril.
Atualmente a pena recebida por cada brasileiro condenado tem sido de cerca de 10 anos.
De acordo com o Departamento de Perdão do Ministério da Justiça da Etiópia, dos quatro estrangeiros condenados por tráfico de drogas que completaram o processo de pedido de perdão da pena, três são brasileiros.
A Etiópia costuma libertar presos em determinadas épocas do ano, principalmente perto de feriados religiosos. O Ministério da Justiça não informou quando a decisão sobre os brasileiros que pediram indulto será tomada, nem critérios levados em conta para julgar os casos.
A Embaixada do Brasil gasta com cada um deles o equivalente a US$ 125 por mês. Ao longo de 2022 desembolsou cerca de US$ 13 mil com isso, sendo que US$ 9 mil foram só no segundo semestre do ano passado, quando a quantidade de prisões disparou.
Os parentes dos detentos que têm condições financeiras às vezes também os mandam dinheiro. Os presos podem ter conta bancária na Etiópia para isso.
De acordo com a Polícia Federal do Brasil, no ano passado 343 pessoas foram presas no aeroporto internacional paulista tentando embarcar com cerca de 2,9 toneladas de drogas no total.
Os números são bem maiores que os de 2021, quando 190 pessoas foram presas por tráfico tentando viajar com 1,3 tonelada.
Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g60ze7zp6o