Por que a invasão da Crimeia em 2014 é relevante agora
Em 18 de março de 2014, Vladimir Putin oficializou a anexação da península ao assinar um projeto de lei incorporando-a à Federação Russa. Por que isso é relevante agora?
No início de 2014, a Crimeia se tornou o foco de uma das piores crises entre a Rússia e países como EUA e Reino Unido desde a Guerra Fria, depois que o ex-presidente da Ucrânia, o líder pró-russo Viktor Yanukovych, foi deposto após uma série de protestos.
O povo ucraniano estava dividido entre aqueles que queriam uma maior integração com a Rússia e aqueles que apoiavam uma aliança com a União Europeia. E Moscou decidiu intervir.
De acordo com o Kremlin, Yanukovych enviou uma carta ao presidente russo, Vladimir Putin, solicitando uma intervenção para restaurar a ordem na Ucrânia.
Mas Putin já havia tomado uma decisão que poucos esperavam.
Ao longo de fevereiro de 2014, o presidente russo estava enviando discretamente milhares de tropas adicionais para as bases que a Rússia tinha na Crimeia, graças ao Tratado de Partição de 1997.
Muitos "voluntários" civis também se mudaram para a península dentro de um plano que foi executado secretamente e concluído com sucesso.
O primeiro sinal óbvio de que a Crimeia estava sendo retirada da Ucrânia veio na sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014, quando a Rússia montou postos de controle em Armyansk e Chongar, os dois principais cruzamentos rodoviários entre a Ucrânia continental e a península da Crimeia.
Esses pontos eram controlados por homens vestindo uma variedade de uniformes: alguns com o exército ucraniano, alguns com o da polícia ucraniana, alguns camuflados sem insígnia nacional. Vários usavam roupas civis.
Uma invasão 'suave'
Após a queda de Yanukovych, o Parlamento da Crimeia elegeu um primeiro-ministro pró-Rússia e votou pela separação da Ucrânia.
Líderes pró-Rússia na região alegavam que precisavam proteger a Crimeia dos "extremistas" que haviam tomado o poder em Kiev e ameaçariam o direito de se falar o idioma russo.
Em 16 de março, eles organizaram um referendo no qual as pessoas foram questionadas se queriam que a república autônoma se juntasse à Rússia.
A Ucrânia e países como EUA e Reino Unido consideraram o referendo ilegal, mas a Rússia apoiou o pleito com vigor.
De acordo com autoridades locais, 95,5% dos eleitores na Crimeia apoiaram a opção de se juntar à Rússia no polêmico referendo que foi realizado sem a presença de observadores internacionais confiáveis.
Em 18 de março, dois dias após a publicação dos resultados, Putin oficializou a invasão ao assinar um projeto de lei incorporando a Crimeia à Federação Russa.
No discurso proferido no Salão de São Jorge do Kremlin antes da assinatura, Putin disse que a Crimeia era "terra santa russa" e que os EUA e seus parceiros haviam cruzado uma linha vermelha. "Tudo tem um limite", disse Putin, e Washington havia ultrapassado esse limite na Ucrânia. Segundo Putin, os EUA estavam acostumados a agir de acordo com a lei do mais forte.
O jornalista da BBC John Simpson, que estava na Crimeia na época, escreveu que essa foi a invasão "mais suave" da era moderna.
"A invasão acabou antes que o mundo percebesse que ela tinha começado", disse ele.
Até aquele dia, quando um grupo de homens armados pró-Rússia atacou uma pequena base do exército ucraniano em Simferopol, matando um oficial e ferindo outro, não havia derramamento de sangue.
'Trazer a Crimeia de volta'
A notícia da anexação foi amplamente criticada internacionalmente e tanto os EUA quanto a União Europeia impuseram uma série de sanções a indivíduos e empresas russas em resposta à anexação da península.
Putin argumentou em abril daquele ano que havia tomado a decisão final sobre a Crimeia depois que pesquisas de opinião secretas mostraram que 80% dos habitantes da península eram a favor da adesão à Rússia.
Mas, um ano depois, ele admitiu pela primeira vez que o plano de anexação da Crimeia havia sido aprovado semanas antes do polêmico referendo.
Durante um discurso na TV em março de 2015, o presidente russo garantiu que havia tomado a decisão de "trazer a Crimeia de volta à Rússia" em 23 de fevereiro, ao final de uma reunião de emergência noturna, horas depois que o líder ucraniano fugira de Kiev.
"Nós terminamos por volta das sete da manhã. Quando nos despedimos, eu disse a todos os meus colegas: 'Estamos obrigados a começar a trabalhar para trazer a Crimeia de volta à Rússia.'"
O compromisso da Rússia de respeitar as fronteiras da Ucrânia
Uma corrente de pensamento na Rússia argumenta que historicamente a Crimeia faz parte do país.
No século 18, a Crimeia fazia parte do Império Otomano, governado pelo tártaros do Canato da Crimeia.
A região permaneceu sob o domínio otomano até que Catarina, a Grande, a tomou dos tártaros, anexando a península ao Império Russo.
Mas em 1954 o líder soviético Nikita Khrushchev transferiu o território, no qual vive uma maioria de etnia russa, para o controle de Kiev.
Após a independência da Ucrânia em 1991, Kiev manteve a Crimeia, mas a Rússia ficou com o controle de uma base naval de Sebastopol na região, sede da Frota do Mar Negro.
No Memorando de Budapeste de 1994, a Rússia fez um acordo com o Reino Unido e os EUA para respeitar as fronteiras da Ucrânia e não ameaçá-las com força. Em troca Kiev precisava transferir para Moscou suas armas nucleares da Era Soviética.
Esse acordo foi violado por Putin em 2014. E o tratado acaba de ser violado novamente com a invasão da Ucrânia.
Por que a Crimeia interessa agora?
Em 1º de fevereiro, Putin acusou países europeus e EUA de ignorarem as preocupações de segurança da Rússia depois que os EUA se recusaram a garantir que a Ucrânia não ingressaria na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Putin alega que a possível adesão da Ucrânia à aliança militar "minaria a segurança da Rússia" e que os EUA estavam usando a Ucrânia para "conter a Rússia". O debate sobre o ingresso ucraniano na Otan sequer está na agenda da organização, e neste momento é apenas uma aspiração de Kiev)
"Imagine que a Ucrânia seja membro da Otan, totalmente equipada com armas, com meios avançados de ataque como os da Polônia e da Romênia, e inicia uma operação na Crimeia", disse Putin.
Desde a anexação da Crimeia, a península tem sido um ponto de antagonismo entre a Rússia, a Ucrânia e países europeus e os EUA.
Enquanto países europeus e os EUA consideram a Crimeia como sendo parte da Ucrânia, Putin continua determinado a defender a ideia de que a península pertence à Rússia, alertando que a entrada da Ucrânia na Otan poderia conduzir os EUA e a Europa a uma guerra com a Rússia pelo controle do território.
"Países europeus, incluindo a França, acreditam que a Crimeia faz parte da Ucrânia, mas nós achamos que ela faz parte da Federação Russa", disse Putin no início de fevereiro após uma reunião com o presidente francês Emmanuel Macron.
"E o que acontece se você tentar mudar essa situação por meios militares?", questionou Putin.
"Tenham em mente que as doutrinas da Ucrânia declaram a Rússia como adversária e estabelecem a possibilidade de ela retomar a Crimeia, inclusive usando força militar."
'Você não pode deixar Putin sair impune'
Mas o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskiy, deixou claro que não planeja recapturar a Crimeia por meios militares.
"Tanto Donbas quanto a Crimeia voltarão para a Ucrânia exclusivamente por meio da diplomacia. Não vamos usurpar o que não é nosso, mas não vamos desistir de nossas terras", disse ele na semana passada.
Horas após o início da invasão russa na Ucrânia, vários líderes de países como EUA e Reino Unido condenaram duramente a intervenção militar russa.
Emmanuel Macron afirmou que a França "responderá sem fraqueza" ao "ato de guerra" da Rússia na Ucrânia.
O primeiro-ministro britânico Boris Johnson assegurou que o Reino Unido "não pode e nem vai fingir que não viu" o ataque "terrível e bárbaro" ordenado pelo Kremlin.
Dias antes, Johnson alertou que a lição do que aconteceu na Crimeia em 2014 é que "Vladimir Putin não pode ficar impune".
Na Ucrânia, Zelensky rompeu relações diplomáticas com Moscou em resposta à invasão e deu armas aos ucranianos que quiserem defender o território.
A União Europeia afirma que se trata de "um dos momentos mais sombrios para a Europa desde a Segunda Guerra Mundial" e alertou que a Rússia será atingida por "enormes sanções".
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