Por que é difícil comparar o surto de coronavírus com outras epidemias do passado
Infectologistas dizem que epidemia ainda está só começando e não é possível ter certeza sobre a transmissibilidade e letalidade do novo vírus; diferenças entre regiões onde surtos ocorreram e evolução da tecnologia também contribuem para maior número de casos confirmados agora.
Há um século, um vírus se alastrou pelo planeta, infectando cerca de 500 milhões de pessoas, o equivalente a um terço da população mundial.
Estima-se que, entre 1918 e 1920, 50 milhões tenham morrido por causa da gripe espanhola, mais do que os 17 milhões de vítimas, entre civis e militares, da 1ª Guerra Mundial.
Esse episódio histórico devastador volta à mente ainda hoje quando surgem novos surtos, como o atual causado por um coronavírus — e houve muitos desde o início do século passado.
Entre os mais recentes, estão os de ebola, que infectou 30 mil pessoas e matou 11 mil na África, entre 2014 e 2016; de gripe suína, que atingiu mais de 200 países desde 2009 e fez 200 mil vítimas; e também os de gripe aviária registradas desde o fim dos anos 1990.
Com a eclosão de uma nova epidemia causada por um micro-organismo até então desconhecido, como o 2019-nCov, como é oficialmente chamado o coronavírus identificado em dezembro na China, muitas pessoas olham para o passado na tentativa de encontrar respostas sobre o que o futuro nos reserva.
No entanto, infectologistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem ser difícil comparar a atual epidemia com outras anteriores — e até mesmo com as duas causadas por outros coronavírus na última década.
"A gripe espanhola ocorreu em uma época em que não tínhamos as medidas de proteção e antibióticos para tratar complicações pulmonares que temos hoje. É complicado comparar até mesmo com a gripe suína, que foi a grande pandemia [epidemia em escala global] dos últimos 30 anos, porque o vírus é outro", diz Rivaldo Venâncio, coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
'Coronavírus nunca causou pandemia'
Gripes são doenças respiratórias causadas por vírus do tipo influenza e geram sintomas mais fortes do que os de um resfriado, que também é uma doença respiratória, mas provocada por outros vírus, como rinovírus e também coronavírus.
"O vírus influenza causou várias pandemias históricas, mas ele tem como característica uma capacidade muito grande de sofrer mutações e de gerar epidemias, algo que não acontece com o coronavírus", diz João Renato Rebello Pinho, médico patologista e chefe do laboratório de técnicas especiais do Hospital Albert Einstein.
Os coronavírus são uma família de vírus conhecida desde os anos 1960 e que circula entre animais. Destes vírus, sabe-se que sete são capazes de saltar a barreira entre espécies e contaminar pessoas. Eles podem causar desde um resfriado comum até problemas respiratórios graves que podem levar à morte.
Pinho diz que o novo coronavírus vem sendo descrito como resultado de uma recombinação genética entre um coronavírus presente em morcegos e outro presente em répteis que gerou uma nova variante capaz de infectar humanos. "Mas isso é bem raro de acontecer", afirma.
E um coronavírus nunca causou uma pandemia, diz Kleber Luz, professor do Instituto de Medicina Tropical da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
"Quem provoca isso são os vírus influenza, porque geram muitos sintomas, como secreções, e são muito infectantes, têm uma grande capacidade de disseminação. Se ele se espalha por uma população que não estiver vacinada, 90% das pessoas vão pegar", diz Luz.
OMS decretou situação de emergência
Até o momento, há 8,1 mil casos do novo coronavírus em 20 países, com apenas 82 fora da China. Houve mais de 210 mortes, todas na China.
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Isso levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a decretar uma situação de emergência de saúde pública de interesse internacional ao anunciar que se trata de um "surto sem precedentes".
Na última década, este tipo de situação foi declarada apenas cinco vezes, segundo a agência Reuters: em 2009, por ocasião do vírus H1N1 que causou epidemia de gripe; em 2014, nas epidemias de ebola no oeste da África e de pólio; em 2016, com a epidemia de zika no Brasil; e em 2019, com a epidemia (ainda em curso) de ebola na República Democrática do Congo.
"Não sabemos o tipo de dano que esse vírus pode causar se ele se espalhar em um país com um sistema de saúde mais frágil", disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.
Os coronavírus já estiveram por trás dois surtos de doenças desde o início deste século. A Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, na sigla em inglês) matou 774 das 8.098 pessoas infectadas em 2002.
A Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers, na sigla em inglês) levou à morte 858 dos 2.494 pacientes identificados desde 2012, principalmente nesta região do mundo.
Assim, o número de casos confirmados do novo coronavírus já é três vezes maior do que os do vírus da Mers e superou o total de infecções registradas pelo vírus da Sars.
Transmissibilidade e letalidade ainda são incertos
Isso pode ser atribuído em parte ao grau de transmissibilidade dos vírus, ou seja, para quantas pessoas um paciente infectado pode transmiti-lo.
Dados da OMS apontam que o vírus da Mers tem uma transmissibilidade menor do que 1, enquanto o da Sars varia entre 2 e 4. Até o momento, essa taxa é estimada em 2 a 5 para o novo coronavírus.
No entanto, especialistas apontam que a epidemia de Mers ocorreu sobretudo na Península Arábica, uma região com uma densidade populacional bem menor do que a da Ásia.
"Isso contribuiu para que houvesse menos casos do que agora e com a Sars, que ocorreram onde há a maior densidade populacional do mundo. Por isso acho precoce atribuir o número de casos à capacidade de transmissão do novo coronavírus", diz Pinho.
Há diferenças inclusive em relação à epidemia de Sars, que também começou na China. "Este surto é distinto porque eclodiu em Wuhan, uma metrópole de 11 milhões de habitantes, enquanto o de Sars começou em cidades menores", afirma Venâncio, da Fiocruz.
Além disso, passaram-se quase oito anos desde a epidemia de Mers e 17 anos desde a epidemia de Sars, e, neste tempo, novas tecnologias foram desenvolvidas para diagnosticar a infecção por um vírus com mais eficiência e rapidez.
"Hoje, com a biotecnologia, rapidamente temos as ferramentas para confirmar casos. Com os surtos anteriores de coronavírus, os laboratórios não tinham como fazer isso tão rápido. Muitos casos permaneciam como suspeitas. E, claro, neste tempo, também aumentou a população mundial e a circulação de pessoas", afirma Luz, da UFRN.
Por fim, infectologistas são unânimes em apontar outro motivo pelo qual é difícil comparar o atual surto com outros do passado: ainda é cedo. Faz apenas um mês que o novo coronavírus foi identificado, e suas características identificadas são provisórias.
"Há dois aspectos fundamentais que ainda faltam ser confirmados: sua transmissibilidade e qual é sua real taxa de letalidade", diz David Uip, infectologista do Hospital Sírio Libanês e ex-secretário estadual de saúde de São Paulo.
Por enquanto, a taxa de vítimas fatais do novo coronavírus é estimada em 2%, bem abaixo dos índices registrados nas epidemias de Mers (35%) e Sars (10%).
Uip diz que esta taxa vem sendo calculada com base nos casos de pacientes que apresentaram sintomas, e ainda não se sabe ao certo quanto seriam os casos assintomáticos.
"Os dados ainda são muito incipientes para definir as características deste vírus e comparar com o que já aconteceu no passado", afirma o infectologista.
"Não podemos nos precipitar. É preciso ter cuidado e trabalhar com muita transparência e exatidão. Já passei por muitas epidemias para saber que cometer exageros gera pânico e uma corrida para os serviços de saúde que os desestabiliza."
Benedito Antonio Lopes da Fonseca, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, afirma que, por enquanto, o novo coronavírus parece ser mais "mais transmissível e menos letal" do que os anteriores.
"Mesmo em respeito a isso, o que foi divulgado até agora aponta que a maioria dos casos graves e mortes são de pessoas que tem algum problema de imunidade, mas não existe um estudo de caso que defina todos os fatores de risco associados", diz o infectologista.
Fonseca avalia que, diante de uma população como a da China, de 1,4 bilhões de habitantes, o número de casos confirmados ainda pode ser considerado pequeno e recomenda cautela.
"Não podemos passar a imagem que se trata de uma doença avassaladora para a humanidade. Com base no que vimos até agora, isso não é verdade."