Por que os EUA apoiam Israel?
*Este texto foi modificado de acordo com a política editorial da BBC
"Esta não é uma tragédia distante - os laços entre Israel e os Estados Unidos são profundos", afirmou o presidente americano Joe Biden na terça, 10/10, em uma de suas várias manifestações desde que, no último 7/10, o grupo palestino Hamas lançou um ataque sem precedentes em Israel.
Em outras declarações, Biden também disse que o apoio dos EUA à segurança de Israel "é sólido e inabalável", "que faremos tudo para que Israel possa se defender" e que os americanos caminham "ombro a ombro com os israelenses".
Nem as palavras de Biden nem sua rápida movimentação para apoiar militarmente o aliado do Oriente Médio, a quem chamou de "parceiro fundamental", é uma novidade no cenário político dos EUA.
Tampouco os 14 americanos mortos e 20 sequestrados durante a ação do Hamas, segundo informações do governo americano, explicariam a atual reação de apoio inequívoco a Israel.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Israel é o país do mundo que mais recebeu, cumulativamente, recursos dos EUA. Entre 1946 e 2023 foram estimados US$ 260 bilhões (o equivalente a mais de R$1,3 trilhão), segundo um relatório do Congresso americano publicado em março deste ano. Mais da metade desse montante foi designado como auxílio militar.
Mas o apoio dos EUA não se restringiu a atos financeiros bilaterais. Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA usaram repetidamente seu poder de veto para barrar admoestações ou sanções a Israel pela ocupação, considerada ilegal pela ONU, de partes do território palestino.
"Na história do Conselho, os EUA vetaram mais de 80 vezes. Em mais da metade delas, os americanos fizeram isso para blindar os israelenses de críticas internacionais. E devo mencionar que, em geral, os EUA foram o único voto (de um total de 15) contrário neste tema no Conselho de Segurança da ONU", afirmou à BBC News Brasil Stephen Zunes, professor de Política e fundador do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de San Francisco, na Califórnia.
"Historicamente, enquanto a maioria dos países critica os ataques terroristas do lado palestino e o bombardeio israelense contra alvos civis, acreditando que é errado matar civis seja por ação de artilharia de exército, seja com homem-bomba, os EUA criticam quase que exclusivamente o lado palestino, sem mencionar Israel", nota Zunes, que há décadas acompanha os posicionamentos americanos em relação a Israel e aos palestinos.
Durante o governo do republicano de Donald Trump (2017-2021), os EUA se afastaram do compromisso histórico por dois Estados e seu sucessor, o democrata Joe Biden, não atuou decisivamente para reabrir esta negociação. Ao contrário, Biden tem tentado ajudar na normalização das relações entre países árabes e Israel, travada há décadas em parte justamente pela indefinição sobre criação de um Estado palestino. Para muitos, a questão palestina foi deixada à margem.
A mais recente negociação é de um acordo de relações diplomáticas entre Arábia Saudita e Israel, cujo destino é incerto diante do novo conflito entre israelenses e palestinos.
Em suas manifestações desde os ataques do Hamas, Biden tem evitado qualquer crítica direta a potenciais excessos da contra-ofensiva israelense, sinalizados pela ONU e pela União Europeia.
Israel cortou o abastecimento de água, energia elétrica, combustível e alimentação para a Faixa de Gaza, área densamente povoada por civis e sob intenso bombardeio. "EUA e Israel são democracias. E democracias são mais fortes quando seguem a lei", disse Biden nesta terça.
Mas, afinal, quais são as origens dos "laços profundos" citados por Biden entre Israel e EUA que explicam o posicionamento americano?
Raízes históricas
Os horrores do Holocausto, que massacrou estimados 6 milhões de judeus, geraram um contexto internacional que facilitou a fundação do Estado israelense.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, EUA e União Soviética emergiram como as grandes potências mundiais, disputando protagonismo na organização do mundo pós-guerra e áreas de influência global. As potências europeias estavam fragilizadas por terem sido o palco da guerra.
Os EUA foram rápidos em se posicionar a favor do novo país e a reconhecê-lo.
A União Soviética também apoiou a criação de Israel e, ao menos durante as duas primeiras décadas de existência do Estado judeu, o apoio americano ao país não era tão diferente do soviético. Quando Israel invadiu o Egito, em 1956, na chamada Crise de Suez, os Estados Unidos se posicionaram contra a ação, assim como a União Soviética.
Uma década depois, porém, os americanos mudaram significativamente de posição. Ficou claro, em meio à Guerra Fria, que Israel poderia ser decisivo para impor derrotas aos interesses soviéticos na região.
Um ponto-chave na virada foi a Guerra dos Seis Dias, quando Israel derrotou uma coalizão de países árabes, compostos inicialmente por Egito, Jordânia e Síria e apoiados pelos soviéticos. A partir daí, o apoio diplomático e financeiro dos Estados Unidos escalou exponencialmente.
Guerra ao Terror
Segundo Zunes, o fator empatia certamente entra também na conta do apoio. Quando Netanyahu compara o ataque do Hamas aos atentados de 11 de setembro de 2001, o maior assalto ao território americano desde a investida japonesa em Pearl Harbor, na Segunda Guerra Mundial, o premiê israelense mobiliza sentimentos poderosos nos americanos, de um trauma coletivo gerado pela derrubada de aviões sobre alvos estratégicos pela organização fundamentalista islâmica sunita Al-Qaeda.
O fato de que nos dois casos os autores das ações eram grupos fundamentalistas islâmicos também facilitaria a identificação da sociedade americana com o sofrimento dos israelenses.
Ao responder aos ataques, os EUA lançaram a chamada "guerra ao Terror", usada como justificativa para as invasões do Afeganistão e do Iraque. Nos dois países, os regimes locais foram derrubados, e o que se seguiu foi uma enorme dificuldade de estabelecer novos governos e de se retirar garantindo estabilidade à área. A estratégia acabou considerada falha por muitos americanos e trouxe enormes custos domésticos e internacionais ao país.
Há quem veja no atual momento de Israel, avaliando uma possível incursão por terra em Gaza, como uma potencial repetição, em menor escala, da história protagonizada pelos americanos em mais de 20 anos de Guerra ao Terror.
"Se o impacto psicológico sobre os israelenses do que aconteceu (no dia 7) é semelhante ao impacto psicológico do 11 de Setembro sobre os americanos, então é imperativo que Israel não cometa os mesmos erros que os EUA cometeram na sua resposta ao 11 de Setembro", afirmou em seu perfil no X (ex-Twitter) o professor Dox Waxman, do Centro de Estudos de Israel da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA). Waxman segue:
"Em particular, a invasão do Afeganistão pelos EUA levou a duas décadas de ocupação e insurgência (e não destruiu a Al-Qaeda). Se as Forças de Defesa de Israel acabarem por invadir Gaza e derrubar o regime do Hamas, também poderão acabar por ocupar Gaza e enfrentar uma insurgência prolongada. Será mais fácil entrar do que sair, como os EUA aprenderam da maneira mais difícil".
Estratégia geopolítica
Há 40 anos, o secretário de Estado dos EUA Alexander M. Haig, apontado pelo então presidente Ronald Reagan, cunhou a seguinte definição sobre o aliado do Oriente Médio: "Israel é o maior porta-aviões americano, é inafundável, não carrega nenhum soldado americano e está localizado numa região crítica para a segurança nacional dos EUA".
Para boa parte dos analistas da relação EUA - Oriente Médio, a descrição segue perfeitamente atual e a estratégia geopolítica é, na avaliação deles, a principal explicação para o apoio praticamente incondicional dos EUA a Israel.
Em um artigo de julho de 2023 sobre as políticas americanas no conflito entre Israel e palestinos, Kali Robinson, especialista em Oriente Médio do Council on Foreign Relations, resumiu: "O Oriente Médio tem sido de central importância para os EUA, à medida que sucessivos governos perseguiram um amplo conjunto de objetivos inter-relacionados, incluindo garantir recursos energéticos vitais, afastar a influência soviética e iraniana, garantir a sobrevivência e segurança de Israel e dos aliados árabes, combater o terrorismo, promover a democracia e reduzir os fluxos de refugiados",
Embora a Guerra Fria tenha acabado, isso não mudou significativamente o modo como os Estados Unidos tratam Israel. Em parte porque a região segue sendo desafiadora para os americanos.
O Irã, uma teocracia islâmica com grande influência na região e um controverso programa nuclear, é o principal antagonista americano na região. E aliado histórico do Hamas, o grupo palestino responsável pelos ataques ao território israelense. Embora tanto israelenses quanto americanos tenham se permitido especular publicamente sobre a possibilidade de que o Irã estivesse por trás da organização e financiamento do ataque à Israel, até o momento a inteligência americana não anunciou ter encontrado ligações diretas entre o país dos aiatolás e o Hamas. Recentemente, o Irã estreitou laços tanto com a China quanto com a Rússia, o que aumentou ainda mais a importância de ter Israel como um aliado americano na área.
Em 2014, então vice-presidente, Biden afirmou em um discurso durante um evento com lideranças israelenses que era "predominantemente no interesse dos próprios Estados Unidos terem um parceiro estratégico como Israel, seguro, democrático e amigo". "Não é um favor, é uma obrigação, mas também uma necessidade estratégica".
"Se não houvesse Israel, teríamos que inventar um", afirmou Biden na ocasião.
Conexões ideológicas
Diante do cenário em que pouquíssimos assuntos são capazes de mobilizar apoio bipartidário na política americana, o apoio a Israel é, por enquanto, uma dessas raridades que congrega a maioria dos Democratas e Republicanos. Nos dois casos, motivos ideológicos ajudam a explicar o entusiasmo.
"Entre uma geração mais velha de liberais americanos há um apego sentimental a Israel, em que israelenses são vistos como pessoas perseguidas que finalmente fundaram seu próprio Estado depois de séculos de exílio. E fundaram um país historicamente progressista, embora não recentemente e não com os palestinos, mas uma social-democracia, um estado de bem-estar generoso muito diferente das reacionárias ditaduras árabes ao seu redor", diz Zunes.
Segundo o cientista político da Universidade de San Francisco, em alguma medida, Israel espelha o mito fundador dos próprios EUA, um país formado por colonos perseguidos religiosos que construíram com suas próprias mãos uma nova terra próspera e livre.
Essa imagem do país, no entanto, têm perdido apoio entre as novas gerações. Segundo um levantamento do Pew Research de julho de 2022, enquanto 67% dos americanos com mais de 65 anos e 60% daqueles entre 50 e 64 anos têm opiniões positivas sobre Israel, apenas 41% dos americanos entre 18 e 29 anos sustentam as mesmas ideias. Entre as razões para o declínio estão as crescentes políticas consideradas religiosamente ortodoxas e autoritárias de governos de direita, como o de Netanyahu, e o avanço contínuo por meio da construção de assentamentos israelenses sobre o território palestino da Cisjordânia.
Para Zunes, porém, a rejeição do eleitorado mais jovem ao comportamento israelense não se traduziu ainda na política de Washington porque a arena política americana segue sendo dominada pelos pais e avós desses jovens.
No lado oposto do espectro político, Israel renovou seu apoio junto aos cristãos evangélicos dos EUA, que representam pouco menos de um terço da população do país. Esse eleitorado, majoritariamente trumpista, ajuda a explicar o apego de Trump à pauta israelense.
"Os evangélicos cristãos de direita veem a questão de Israel como uma manifestação da profecia bíblica necessária para o retorno de Jesus Cristo à Terra. Eles veem a luta entre Israel e os palestinos como uma continuação da luta entre os israelitas e os filisteus", afirma Zunes, referindo-se ao Velho Testamento. Fenômeno semelhante têm se repetido com evangélicos no Brasil. Lideranças evangélicas brasileiras têm tomado partido em favor de Israel e justificado posicionamentos políticos com base em interpretações bíblicas.