Quem foi Joseph McCarty, 'inquisidor' anticomunista que liderou a maior 'caça às bruxas' dos EUA
A BBC News Mundo conversou com três historiadores e consultou diversos documentos da época para investigar a figura do polêmico senador americano e fazer um balanço de seu legado.
"Você é ou já foi membro do Partido Comunista?"
Com esta pergunta, Joseph Raymond McCarthy (1908-1957) - um senador republicano pouco conhecido do centro dos Estados Unidos - passou a ser uma figura central da política de seu país, no início dos anos 1950.
A pergunta era o centro do arsenal empregado pelo legislador na sua campanha para desmascarar inúmeros supostos comunistas e espiões soviéticos que, segundo ele, estariam infiltrados nas universidades, em Hollywood, na burocracia governamental e até no exército.
O propósito desses infiltrados seria "destruir por dentro nossa grande democracia".
Mas a simples recusa a responder esta e outras perguntas feitas por McCarthy às pessoas convocadas pelo seu todo-poderoso Subcomitê de Investigações Permanentes passou a ser prova suficiente para condenar inúmeras pessoas, de forma oficial ou extraoficial.
Estavam abertas as portas para uma era obscura que historiadores e cientistas políticos chamam de "macarthismo" - termo que, hoje, designa a "prática de formular acusações e fazer insinuações sem provas", como registra o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
Mas como este senador conseguiu realizar essa caça às bruxas? Por que ninguém o impediu e quais as sequelas das suas ações na política e nos direitos civis nos Estados Unidos?
A BBC News Mundo - o serviço de notícias em espanhol da BBC - ouviu três historiadores e analisou documentos da época para responder a estas perguntas.
Desconhecido que aproveitou a oportunidade
McCarthy nasceu no Estado americano de Wisconsin, no centro-norte do país, em novembro de 1908.
Sua origem era humilde. Ele precisou abandonar a escola ainda jovem para trabalhar em uma fazenda, mas retomou os estudos aos 19 anos e acabou se formando advogado.
McCarthy começou sua carreira pública como juiz, em 1939. Ele serviu as forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), segundo sua biografia no site do Senado americano.
Ao término do conflito, McCarthy entrou na política, primeiramente pelo Partido Democrata e, logo em seguida, pelo Republicano. Ele foi eleito senador em 1946.
Mas, mesmo com seu rápido avanço, Joseph McCarthy não era considerado uma figura relevante da política - e não havia indícios de que ele progrediria além disso.
"O início da sua carreira não foi particularmente brilhante, ele não tinha um grande discurso, nem provinha de um Estado relevante. [...] Mas ele aproveitou o clima de histeria e paranoia coletiva reinante nos Estados Unidos no início dos anos 1950 para construir seu nome", explica à BBC News Mundo o professor de história dos Estados Unidos Francisco Soto, da Universidade de Los Andes, na Venezuela.
Em 1949, dois acontecimentos colocaram em dúvida a aura de invencibilidade conquistada pelos Estados Unidos depois da Segunda Guerra.
O primeiro foi a notícia, em agosto, de que a União Soviética (URSS) possuía armas nucleares. E o segundo, em outubro, foi a vitória dos comunistas liderados por Mao Tsé-Tung (1893-1976), na China.
"Como o país mais poderoso estava perdendo a Guerra Fria?", comenta a historiadora Ellen Schrecker, uma das autoras do livro The Age of McCarthyism ("A era do macarthismo", em tradução livre).
"Políticos, empresários e jornalistas de direita atribuíram estes fracassos inexplicáveis a uma conspiração orquestrada pelo Partido Comunista dos Estados Unidos, seguindo ordens da URSS", explica ela.
Neste contexto, McCarthy ocupou as primeiras páginas dos jornais em fevereiro de 1950. O motivo foi seu discurso em um comício, em uma pequena localidade do Estado da Virgínia Ocidental, no nordeste do país.
"Embora não tenha tempo de mencionar o nome de todos os homens dentro do Departamento de Estado que foram indicados como membros do Partido Comunista e de uma rede de espionagem, posso afirmar que tenho em mãos uma lista com 205 nomes", declarou o senador, segurando uma folha de papel em uma das mãos.
Mentira repetida mil vezes
O tempo passou e os pesquisadores não encontraram provas da existência da famosa lista de McCarthy.
"Ele era um político oportunista, muito ambicioso e inescrupuloso, que não se importava com a verdade", afirma Schrecker.
Mas esta e outras denúncias posteriores permitiram ao senador ganhar popularidade, até que ele passou a presidir um subcomitê parlamentar criado para desmascarar os supostos espiões soviéticos e comunistas infiltrados no país.
Uniu-se ao subcomitê de McCarthy o controverso Comitê de Atividades Antiamericanas. Este comitê, desde o final dos anos 1930, vinha perseguindo acadêmicos, escritores e astros de Hollywood por sua suposta simpatia com as ideias de Karl Marx (1818-1883) e Vladimir Lênin (1870-1924).
"O macarthismo, compreendido como a caça às bruxas anticomunista, similar à Inquisição espanhola, dentro dos Estados Unidos, já estava em andamento antes que surgisse McCarthy", explica Schrecker. "Mas, com ele, ela se intensificou."
Durante o governo do presidente democrata Harry Truman, entre 1945 e 1953, o Congresso americano realizou audiências contra supostos espiões.
Também foi criado o "programa de lealdade", que incluiu pesquisas e interrogatórios de funcionários públicos suspeitos de serem comunistas.
Grandes aliados
Além do contexto internacional, houve fatores internos que contribuíram para a ascensão de McCarthy. Um desses elementos foram os meios de comunicação.
"A massificação da televisão permitiu ao político difundir sua mensagem anticomunista, especialmente o temor de um possível ataque soviético aos Estados Unidos", segundo Soto.
A visão de Schrecker é similar. Ela destaca que McCarthy sabia "manipular os jornalistas".
"Ele sabia os horários de fechamento dos jornais e que precisava anunciar à tarde a descoberta de 20 espiões dentro do exército, ou fazer outras declarações escandalosas, porque, assim, os jornalistas não teriam tempo de verificar as informações e descobrir que era mentira", explica ela.
Já o historiador da Universidade Complutense de Madri, na Espanha, Luis Martínez del Campo, atribui a notoriedade de comunicação de McCarthy ao uso da demagogia.
"Ele não hesitou em recorrer a falsidades ou teorias da conspiração e ao indiciamento público dos seus oponentes para, entre outras coisas, prejudicar o pluralismo político", segundo ele.
Por isso, Martínez del Campo - que também é pesquisador de história contemporânea - considera McCarthy um "pioneiro do populismo de direita".
Outro elemento da equação que favoreceu o senador foi o então diretor do FBI (serviço de inteligência dos EUA) J. Edgar Hoover (1895-1972), que era um furioso anticomunista.
"Hoover desempenhou o papel mais importante na ascensão e consolidação do macarthismo", afirma Schrecker. "Se quiséssemos nos referir a este fenômeno com o nome de alguém, deveria ter sido com o nome de Hoover."
O chefe de polícia ficou famoso por ordenar o acompanhamento e espionagem de pessoas influentes, muitas vezes sem ordem judicial. Ele também usava as informações coletadas para extorquir as pessoas em busca dos seus objetivos.
"O FBI procurou qualquer indício de comunismo nas instituições, nas universidades e no cinema", afirma Soto.
"Os processos elaborados pelo FBI, tanto de Albert Einstein (1879-1955) quanto de Charles Chaplin (1889-1977), comprovam suas ações. Foram investigações que tentaram vincular estas figuras proeminentes ao comunismo."
Perigo real ou desculpa?
"Um comunista dentro de uma fábrica de equipamentos militares, de uma universidade ou do Departamento de Estado é demais."
Com estas palavras em 1952, McCarthy deixou claro sua convicção sobre a gravidade da ameaça comunista. Mas esse risco era realmente tão sério assim?
Casos como o do casal Julius e Ethel Rosenberg, que foram executados em 1953 por terem revelado segredos nucleares para a URSS, demonstram que o Kremlin tinha olhos e ouvidos dentro dos Estados Unidos. Mas os especialistas consultados pela BBC News Mundo afirmam que esse perigo foi superdimensionado.
"No caso dos Estados Unidos, o Partido Comunista era formado por intelectuais e pensadores que criticavam o modelo socioeconômico, mas, na verdade, eles não buscavam o poder", explica Soto.
Já Martínez del Campo declarou que "nada indica que houvesse uma grande conspiração para derrubar o governo".
Os especialistas também concordam que as investigações e audiências de McCarthy não conseguiram revelar um único espião soviético, nem identificar nenhum comunista americano que tivesse conspirado contra seu país. Mas elas atingiram outros objetivos.
"O macarthismo foi uma purga que destruiu a esquerda norte-americana e atingiu as organizações afiliadas ou associadas a causas defendidas pelo comunismo, como sindicatos ou grupos promotores dos direitos civis [contra a discriminação racial]", afirma Schrecker.
Acusações contra o exército
Não se apresentar ao subcomitê presidido por McCarthy ou ao Comitê de Atividades Antiamericanas, ou ainda se negar a responder suas perguntas, equivalia a uma declaração de culpa. Por isso, aqueles que optaram pelo silêncio foram demitidos e, em alguns casos, presos.
Schrecker calcula que, até 1957, 12 mil a 15 mil americanos sofreram algum tipo de perseguição pelas suas ideias.
Mas como isso pôde acontecer? Como um advogado violou os princípios básicos do direito, como a presunção de inocência e o devido processo legal? E por que ninguém o impediu?
"Afirmava-se que a ameaça da URSS era tão séria que seria preciso ignorar ou desvirtuar alguns dos princípios do Estado de direito", explica a historiadora.
"O que fez com que o macarthismo fosse tão poderoso e diferente de outras perseguições políticas em países mais autoritários é que houve pouca violência", segundo Schrecker.
"Apenas duas pessoas morreram [o casal Rosenberg]. A principal sanção por ser comunista era econômica. As pessoas eram demitidas dos seus empregos e eram criados obstáculos para que elas conseguissem outros trabalhos."
A possibilidade de ser acusado de comunista ou traidor pelo senador fez com que muitos dos que poderiam enfrentá-lo se negassem a fazê-lo - até mesmo presidentes americanos, como Dwight Eisenhower, que governou o país entre 1953 e 1961.
"Não vou me meter na sarjeta com esse sujeito", respondeu o presidente a uma pessoa que, certa vez, pediu que ele colocasse o polêmico senador no seu devido lugar, em uma carta disponível na Biblioteca Presidencial Eisenhower.
A sorte de McCarthy começou a mudar na primavera de 1954. Naquele ano, ele iniciou uma investigação contra o exército americano por supostamente acolher comunistas nas suas fileiras.
A instituição contestou as acusações sem provas e, às vezes, contraditórias do senador, além do seu estilo agressivo.
"O senhor não sabe o que é decência?", disparou contra McCarthy o advogado do Exército, em frente às câmeras de televisão.
A partir dali, Eisenhower autorizou os funcionários do governo a ignorar as convocações do subcomitê, reduzindo a autoridade do senador.
"Os ataques de McCarthy contra as forças armadas foram o início do seu fim, pois a instituição era muito respeitada pelo povo norte-americano", explica Soto.
"Não se pode esquecer que, pouco tempo antes, elas haviam derrotado o nazismo e evitado que toda a península da Coreia terminasse nas mãos dos comunistas."
Meses depois das polêmicas audiências contra o exército, o Senado americano censurou a posição de McCarthy. Desprestigiado, o senador morreu alcoolizado em 1957.
Mas os especialistas acreditam que a forma de fazer política que tornou o controverso personagem tão famoso não desapareceu com sua morte.
"Basta observar as leis sendo aprovadas em certos Estados governados pelos republicanos, autorizando a demitir professores que ensinarem que a escravidão foi a causa da Guerra Civil", lamenta Schrecker.
"Ou as prisões de centenas de estudantes que protestaram pacificamente contra a guerra em Gaza. Isso é totalitarismo", opina a pesquisadora.