'Quid pro quo': A expressão medieval que hoje domina a discussão de impeachment nos EUA
Donald Trump diz que não fez 'toma lá dá cá' com presidente ucraniano; versão aportuguesada da expressão ganhou significado diferente do original.
"Não houve nenhum quid pro quo" é uma das frases mais repetidas pelo presidente americano Donald Trump nas últimas semanas, desde que veio a público o telefonema realizado entre ele e seu par ucraniano.
A expressão, que significa "algo dado a uma pessoa em troca de outra coisa" (na definição do dicionário de Cambridge), vem do latim e acabou ganhando um significado um pouco diferente na língua portuguesa, e o motivo disso você descobrirá ao final desta reportagem. Nos EUA, enquanto isso, essa expressão está no centro do debate em torno do pedido de impeachment que a oposição democrata abriu contra Trump.
No telefonema entre Trump e Volodymyr Zelensky, em 25 de julho, segundo documento divulgado pela própria Casa Branca, Trump pede que o presidente ucraniano "dê uma olhada" no suposto envolvimento da família de Joe Biden (pré-candidato democrata nas eleições presidenciais do ano que vem) em casos de corrupção na Ucrânia.
Trump também admitiu ter retido quase US$ 400 milhões em auxílio militar a Kiev alguns dias antes de sua conversa com Zelensky, mas negou que isso fosse para pressioná-lo — e sim para forçar a "Europa e outros países a também contribuírem" com o governo ucraniano.
Assim, quando afirma que "não houve nenhum quid pro quo", Trump defende que não usou a ajuda militar para pressionar o governo ucraniano a investigar Biden.
Mas essa linha de argumento foi colocada em xeque no último dia 3 de outubro, quando vieram à tona mensagens que indicam que alguns dos diplomatas americanos envolvidos com a Ucrânia temiam que houvesse, justamente, um "toma lá dá cá" na relação com o governo de Kiev.
No mesmo dia da ligação entre Trump e Zelensky, o então enviado especial do Departamento de Estado americano à Ucrânia, Kurt Volker, afirmou a um assessor de Zelensky:
—"Bom almoço, obrigado. Tive retorno da Casa Branca — presumindo que o Presidente Z convença Trump de que vai investigar/"chegar ao fundo do que ocorreu em 2016" (aparente referência ao ano em que um procurador-geral ucraniano foi expulso, sob pressão de Biden), vamos decidir uma data para uma visita a Washington".
A conversa foi tornada pública em 3 de outubro pelo próprio Congresso americano, junto a uma troca de mensagens de 1º de setembro entre Bill Taylor, diplomata de alto escalão na Ucrânia, e Gordon Sondland, embaixador americano na União Europeia:
—"Estamos agora dizendo que assistência de segurança e reuniões com a WH [sigla de Casa Branca] estão condicionadas a investigações?", disse Taylor em mensagem de texto a Sondland.
Depois, no dia 9 de setembro, o mesmo Taylor disse a Sondland:
—"Como disse por telefone, acho que é uma loucura reter ajuda de segurança (em aparente referência aos quase US$ 400 milhões de ajuda militar retidos à Ucrânia) em troca de ajuda com uma campanha política".
Sondland respondeu:
—"Bill, acho que você está incorreto quanto às intenções do presidente Trump. O presidente foi claríssimo sobre nenhum quid pro quo de nenhum tipo. O presidente está tentando avaliar se a Ucrânia vai realmente adotar as reformas e a transparência que o presidente Zelensky prometeu durante sua campanha e sugiro que nós paremos essa ida e vinda de textos".
'Interesse da nação'
Trump tem afirmado que essa mensagem de Sondland deixa claro que não houve quid pro quo entre ele e Zelensky. Do outro lado, democratas têm dito que a ação do presidente visava a interferência de um país estrangeiro no pleito do ano que vem, com potenciais ganhos eleitorais para o republicano. Como exemplo disso, críticos afirmam que Trump pedia, no telefonema, que Zelensky lidasse com seu advogado pessoal, Rudy Giuliani, no referente às investigações sobre Biden, e não pelos canais diplomáticos tradicionais.
"Alguém acha que esse telefonema era do interesse da nação, ou do interesse pessoal e político do presidente?", afirmou em setembro o senador democrata Chuck Schumer.
Além disso, alguns democratas têm dito que não é necessário um "toma lá dá cá" explícito para dar continuidade ao processo de impeachment.
"O governo argumenta que o documento (em referência ao memorando do telefonema entre Trump e Zelensky) não contém um quid pro quo explícito. Não é preciso que haja esse 'quid pro quo' explícito para quebrar o juramento (presidencial) e a lei, quando você próprio conduziu o 'quid pro quo' e reteve ajuda militar", afirmou no plenário da Câmara dos Representantes o deputado democrata Sean Patrick Maloney.
Muitos republicanos, porém, mantiveram a defesa de Trump. "Uau. Pedido de impeachment por causa disso?", afirmou pelo Twitter o senador republicano Lindsay Graham quando a Casa Branca divulgou o memorando sobre o telefonema de 25 de julho. "Que (ausência de) quid pro quo. Os democratas perderam a cabeça no que se refere ao presidente Donald Trump."
Agora, os comitês da Câmara de Representantes envolvidos no inquérito do impeachment estão emitindo intimações para oficiais da Casa Branca e do Pentágono, em busca de informações relacionadas à retenção da ajuda militar à Ucrânia - que evidenciem, ou não, o possível quid pro quo.
Em português, quiprocó: uma confusão farmacêutica
A expressão latina vem da era medieval e originalmente se escrevia qui pro quo, o que ajuda a explicar por que na língua portuguesa acabou se transformando na palavra "quiprocó", diz à BBC News Brasil José Rodrigues Seabra Filho, professor do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Só que, em português, a palavra tem um significado diferente: em vez de significar "dar-se algo em troca de outra coisa", como no original latino, significa, segundo o Houaiss, "equívoco que consiste em tomar-se uma coisa por outra; confusão criada por esse equívoco: 'o fato de serem gêmeos gerou um enorme quiprocó'".
Como o "toma lá dá cá" original virou uma "confusão"?
O serviço de dúvidas da língua portuguesa do Instituto Universitário de Lisboa cita uma explicação: os boticários, que eram os antigos farmacêuticos, nem sempre tinham em mãos os componentes necessários para produzir os medicamentos receitados pelos médicos.
Na ausência desses componentes, recorriam a um livro chamado Quid pro quo, que era basicamente um livro com equivalentes medicinais que pudessem substituir os ingredientes em falta.
Um dicionário datado de 1720 diz, segundo o instituto lisboeta, que "quando os boticários não têm uma droga, acham nele (livro) outra para porém em seu lugar. Daí veio o dizer 'livre-nos Deus de um quid pro quo, porque às vezes há erros nas drogas e, em lugar de (remédio), os boticários dão um veneno".
Ou seja, o quid pro quo às vezes levava a confusões cometidas em remédios, com desfechos pouco agradáveis.