'Sair da China por causa de epidemia seria desistir de um sonho': o brasileiro que decidiu ficar em Wuhan apesar de surto de coronavírus
Miguel Manacero, que deixou interior paulista em agosto de 2019 para aprender mandarim na Universidade de Hubei, decidiu 'no último minuto' ficar para seguir com seus planos.
Deixar a cidade de Wuhan, capital da província de Hubei na China — epicentro do surto do novo coronavírus — se tornou uma emergência para os brasileiros e outros milhares de estrangeiros imersos em uma crise de saúde global que ainda está longe do fim. Mas para o estudante Miguel Manacero, de 18 anos, embarcar no avião da Força Aérea Brasileira que levou de volta ao Brasil 34 brasileiros significava abandonar "o sonho chinês" alimentado desde a infância.
"Voltando para o Brasil eu estaria abrindo mão de um sonho", conta Mancero à BBC News Brasil. "Não foi fácil ficar aqui (…) eu não tinha certeza do que eu ia fazer até o último minuto, que foi quando eu decidi ficar."
Miguel Manacero deixou a cidade de Guapiaçu no interior paulista em agosto do ano passado para aprender mandarim na Universidade de Hubei, idioma que ele começou a estudar aos 12 anos. O interesse pela China surgiu com o kung fu, arte marcial que ele pratica desde a infância. "Meu sonho começou quando eu tinha nove anos e comecei a ter contato com a China por meio do kung fu", relata.
O jovem brasileiro afirma que deixar a China poderia comprometer o término do curso de mandarim, qualificação que pode ajudá-lo a conseguir uma bolsa de estudos para um curso de graduação na Universidade de Hubei.
"Minha mãe disse que se eu voltasse para o Brasil ela não saberia quando me mandaria de volta à China", disse. Sem saber como, nem quando, poderia retomar os estudos em Hubei, Manacero optou por arriscar e permanecer em Wuhan apesar do alto risco de infecção. "Tento não pensar muito (no contágio), mas sei que o risco é grande", afirma.
A embaixada brasileira na China deu um prazo para a comunidade no local decidir se embarcaria ou não de volta ao Brasil. "Meus pais me apoiaram. Foi algo que pensei muito e tive bastante dificuldade para decidir", relata.
Manacero admite que sentiu "bastante medo" em ficar pela incertezas relacionadas à expansão do vírus. A epidemia já matou 1.013 pessoas (11/02). Apenas na segunda-feira, 108 pessoas morreram em consequência do vírus, o maior número de mortes já registrado em um dia desde o início do surto, em dezembro.
A letalidade do coronavírus já supera a da epidemia provocada pelo Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) — também originado na China — que matou 774 pessoas ao redor do mundo em 2003.
Repatriados
O grupo de 34 brasileiros que estavam em Wuhan foi trazido em dois aviões da FAB no domingo após semanas de impasse. Inicialmente, o presidente Jair Bolsonaro indicou que não tomaria nenhuma medida para retirá-los de Wuhan. "Não seria oportuno a gente tirar de lá (…) não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas", afirmou.
O recuo veio logo após a difusão de um vídeo em que o grupo fez um apelo pedindo ajuda ao governo. A iniciativa foi antecipada por uma série de reportagens que detalharam o temor dos brasileiros de permanecerem em Wuhan.
Miguel Mancero esteve com os brasileiros na sexta-feira passada pouco antes da viagem de volta ao Brasil. "O clima era de alívio e de muita unidade", conta.
Os 34 repatriados ficarão em quarentena por 18 dias na cidade na cidade de Anápolis, a 55 km de Goiânia. "Chegamos sãos e salvos e estamos sendo bem recebidos", contou à BBC News Brasil a estudante de doutorado Indira Santos, repatriada no domingo. "(Miguel) sempre apoiou a todos desde o início, mas no final decidiu ficar".
A queda de braços diplomática em torno à repatriação dos brasileiros teria ajudado o estudante a definir sua carreira universitária. "Estava em dúvida entre (estudar) educação física e relações internacionais, mas acabei decidindo por relações internacionais depois desse processo que infelizmente a gente está passando", afirma.
Campus fantasma, rotina na cozinha, vida social virtual
Desde o ano novo chinês, Wuhan — a 42ª maior cidade do mundo — ainda se vê desabitada. O transporte público continua paralisado, a circulação de automóveis proibida e as pessoas permanecem confinadas em suas casas com medo de contágio. Restaurantes e lojas permanecem fechados.
Antes mesmo de Wuhan ser bloqueada para conter a expansão da epidemia, o estudante brasileiro já havia estabelecido uma espécie de "quarentena pessoal" para se preparar para uma prova de proficiência em mandarim.
Seu principal desafio, ele diz, não é lidar com o confinamento e sim cozinhar, tarefa que ele nunca tinha feito desde que chegou à China. "Não tinha utensílios de cozinha, tinha apenas uma faca e uma chaleira, mais nada. (Cozinhar) me pegou de surpresa."
O campus da Universidade de Hubei onde Manacero mora permanece deserto. O movimento nas ruas aumenta um pouco quando o supermercado local abre "a cada quatro dias mais ou menos", relata. Esse é um dos poucos momentos que o estudante deixa seu apartamento no campus para reabastecer o estoque de alimentos.
Antes de entrar no supermercado, a temperatura dos consumidores é verificada e o uso de máscaras continua sendo obrigatório. Manacero diz que alimentos processados não faltam, mas vegetais estão entre os produtos que desaparecem das prateleiras rapidamente.
O jovem não se arrisca a sair do campus universitário. Quanto maior for a exposição, maior é o risco de contágio. O confinamento imposto pela epidemia — e acompanhado de perto pelas autoridades chinesas — alterou drasticamente o convívio social. A relação do estudante brasileiro com os amigos que permaneceram na universidade se limita ao contato virtual. "Não os vejo há algum tempo. O pessoal evita falar um com o outro cara a cara", conta.
Imerso no universo das artes marciais e culturais chinesas, como o kung fu e a dança do Dragão e do Leão, Miguel diz que ele e seus companheiros chineses não abandonaram a disciplina mesmo em meio à epidemia. Treinam em seus quartos, com a ajuda de um aplicativo, e logo compartilham as imagens do treinamento "para bater o ponto". "Estamos tentando fazer com que a vida continue caminhando dentro do possível", afirma.
A recomendação dos chineses para combater o vírus é a higienização permanente das mãos, uso de máscaras, boa alimentação e atividades físicas para reforçar o sistema imunológico.
Por ter uma vida de atleta e ser saudável, o estudante brasileiro confia que se for infectado não correria risco de morte. "O vírus ataca todo tipo de pessoa, mas a mortalidade é de pessoas com problemas pré-existentes", afirma.
Entretanto, a visão inicial de que somente idosos e pessoas com doenças crônicas correm risco de morte "é equivocada". A avaliação é de um médico estrangeiro que atua na China e está colaborando para ajudar a controlar a epidemia.
"Não se pode dizer que os jovens não correm riscos", afirma o médico à BBC News Brasil, ao pedir que sua identidade seja preservada. "O vírus parece mais agressivo em Wuhan do que em outros lugares. Em outras cidades a taxa de mortalidade é muito mais baixa", compara o médico.
A morte do médico chinês que tentou alertar sobre a epidemia se tornou um caso emblemático sobre a agressividade do vírus, inclusive entre os jovens. O oftalmologista Li Wenliang, 34, morreu após contrair o coronavírus enquanto atendia pacientes na cidade de Wuhan, epicentro do surto da doença.
Dos mais de 42 mil casos de infecção registrados até esta terça-feira, quase 32 mil — três quartos dos infectados — estão concentrados na província de Hubei.
"Ou o sistema de saúde está sobrecarregado ou o vírus é mais agressivo em Hubei, onde parece existir uma carga viral maior", afirma o médico. "Provavelmente é isso que está pesando na mortalidade e na cadeia de infecção", afirma.
No sábado, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que ainda é cedo para afirmar que o surto tenha atingido seu pico.
O estudante brasileiro espera retomar o curso de mandarim a partir do dia 17. As aulas, antes presenciais, serão substituídas por vídeoaulas. Mancero ainda não sabe quando retornará ao Brasil.