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'Sem corpo, não há crime': a menina desaparecida que levou à mudança de leis na Inglaterra

11 jan 2017 - 19h09
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O rosto de Mona foi estampado nas páginas de incontáveis jornais e folhetos na época do crime
O rosto de Mona foi estampado nas páginas de incontáveis jornais e folhetos na época do crime
Foto: Chris Hobbs / BBC News Brasil

Até 80 anos atrás, um conceito antigo era sólido na legislação da Inglaterra: o de que um homicídio não poderia ser provado sem que um corpo fosse encontrado. Mas isso começou a mudar com o assassinato de Mona Tinsley, de 10 anos, um caso que teve reviravoltas macabras e bizarras e dominou as atenções no país à época.

A menina britânica desapareceu em 5 de janeiro de 1937 após sair da escola em Newark-on-Trent, no nordeste inglês. Poucas horas depois, uma testemunha identificou um homem que havia visto nos arredores do colégio como sendo um ex-inquilino que vivia na casa da família dela.

"Não pode ser ele", disse a mãe da garota, Lilian Tinsley, à polícia.

A forma como os pais de Mona se comportaram chamou a atenção do historiador Chris Hobbs, morador da cidade.

"A reação de Lilian e seu marido, Wilfred, ao serem questionados foi estranha. Eles pareciam evasivos", disse ele.

A fachada da casa que estava no centro do caso mudou muito pouco desde então
A fachada da casa que estava no centro do caso mudou muito pouco desde então
Foto: Chris Hobbs/BBC / BBC News Brasil

"Quando pressionada pelos policiais, Lilian Tinsley admitiu que tiveram um inquilino por pouco tempo, conhecido por seus filhos como 'tio Fred'. Ela acabou revelando seu nome, Frederick Hudson, e, com uma óbvia relutância, que ele era amigo de sua irmã, Edith Grimes, que morava em Sheffield."

Hobbs se perguntou: "Por que os pais agiriam assim quando a segurança da sua filha estava em jogo?".

Uma possível resposta sombria viria à tona. A irmã de Lilian, tia da menina, informou à polícia um nome ligeiramente diferente - Frederick Nodder -, mas insistiu que não o via há meses. Era mentira.

Os investigadores descobriram rapidamente que um vizinho o havia visto em Sheffield pouco depois do Natal, dirigindo um caminhão onde era possível ler "Retford", o nome de uma cidade de Nottinghamshire, o mesmo condado de Newark-on-Trent.

Isso os levou a uma empresa de transporte baseada em Hayton, um vilarejo próximo. Havia se passado apenas um dia desde o desaparecimento de Mona.

'Sem corpo, não há crime'

O caso da execução de três pessoas indevidamente em 1660 ainda assombrava a Justiça
O caso da execução de três pessoas indevidamente em 1660 ainda assombrava a Justiça
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Benjamin Darlow, especialista em história da legislação, diz que o princípio de que não era possível provar um assassinato sem haver um corpo exisita desde 1660, por causa de um caso envolvendo um homem chamado William Harrison, conhecido como "O Prodígio de Campden".

Harrison havia desaparecido próximo a Chipping Campden, na região central da Inglaterra. Dois homens e uma mulher foram declarados culpados e enforcados pelo crime.

Em 1662, porém, Harrison reapareceu contando que havia sido sequestrado.

"Isso teve um enorme impacto sobre a lei criminal inglesa, e o princípio de que 'sem um corpo, não há crime', perdurou pelos próximos 294 anos", diz Darlow.

"O caso de Mona Tinsley fez parte de uma narrativa importante no século 20, que levou à abolição desse conceito em 1954. Foi o caso mais notório e amplamente reportado de seu tempo."

Hoje, o princípio de que "sem corpo, não há homicídio" não existe mais na lei da Inglaterra. "Uma condenação por assassinato pode ser baseada em evidências circunstanciais se elas forem suficientemente fortes e convincentes", explica Darlow.

"Ainda assim, é bem difícil provar um homicídio sem um corpo."

'Horas vitais'

No caso de Mona, a polícia encontrou Nodder, de 50 anos, e o confrontou do lado de fora da casa que alugava. Ele negou qualquer envolvimento, mas uma garota foi vista no local poucas horas antes, no mesmo dia.

Buscas no interior identificaram desenhos feitos por uma criança e digitais na louça. Nodder foi preso.

Testemunhas disseram tê-lo visto em um ônibus que ia de Newark para Retford na companhia de uma menina. Diante dessa evidência, Nodder pediu para se encontrar com a tia de Mona, Edith Grimes, insistindo que isso faria com que a criança fosse achada "bem e com vida".

A casa de Nodder ficava a uma curta distância do canal Chesterfield
A casa de Nodder ficava a uma curta distância do canal Chesterfield
Foto: BBC / BBC News Brasil

"Descobriu-se que Edith se encontrava com Nodder semanalmente. Ela sabia muito bem onde ele morava, mas não contou isso à polícia", diz Hobbs.

O historiador conta que notícias da época os descreviam como "amigos". "É impressionante como ela e Lilian Tinsley tentaram tirar o foco de Nodder. Aparentemente, Edith e ele estavam tendo um caso, mas é surpreendente que ela e a própria mãe de Mona estavam dispostas a obstruir a investigação", afirma Hobbs.

"Será que isso atrasou as buscas pela menina por algumas horas que se revelariam vitais?"

Quando Edith e Nodder se encontraram, ele disse apenas ter mandado Mona para Sheffield para a menina se encontrar com sua tia. Ninguém acreditou em uma palavra dele, mas a falta de um corpo dificultou a investigação.

Depois de buscas na casa do suspeito e nos jardins, campos, rios e canais nos seus arredores, não havia nenhum vestígio do paradeiro de Mona. Em 10 de janeiro de 1937, Nodder foi acusado criminalmente, mas apenas por rapto.

Detetives sobrenaturais

As buscas pela menina usaram diversos métodos convencionais, mas também outros mais heterodoxos.

Pessoas que diziam ter habilidades místicas tiveram um papel de destaque na procura pela menina, muitas vezes direcionando os esforços da polícia ao usar forquilhas que diziam serem capazes de localizar objetos debaixo da terra ou da água.

James Clarke Melton foi um dos principais personagens dessa parte da história e, carregando um sapato de mona e ossos de baleia, concentrou-se em uma pedreira.

Em 14 de janeiro, disse ao jornal Nottingham Post que "estava muito confiante no sucesso" de sua empreitada, mas nada foi encontrado no local.

Diversos sensitivos participaram do caso. O jornal The Daily Mirror testou três deles - obtendo acesso aos Tinsley e à casa de Nodder -, mas só obteve informações vagas e conflitantes.

Estelle Roberts, uma das mais famosas médiuns dos anos 1930 na Inglaterra, disse depois ter sido conduzida à cena do crime pela polícia e informado que Mona estava no rio. Mas seja o que for que tenha dito, não foi suficiente para achar a menina.

O caso virou manchete nos principais jornais do país. O The Daily Express ofereceu uma recompensa de 250 libras (15,5 mil libras - R$ 60,3 mil - em valores atuais). Um jornalista quase foi preso por desacato ao publicar uma foto de Nodder.

A imprensa e o público acompanharam de perto as audiências do caso. Foi relatado na época que alguns "riam e brincavam enquanto se empurravam para conseguir um lugar no tribunal" e, por isso, foram repreendidos por funcionários.

Condenação

Apenas dois meses após o desaparecimento de Mona, Nodder foi julgado em Birmingham.

Sua defesa argumentou que a menina ainda poderia ser achada com vida e que não era possível especular sobre seu paradeiro. Mas Nodder não deu qualquer evidência disso.

O júri levou apenas 16 minutos para se decidir por sua condenação. Ele ficou preso por sete anos.

Claramente frustrado por considerar que um assassino estava recebendo uma pena leve demais, o juiz Rigby Swift disse a Nodder que, "em sua opinião, ele estava sendo condenado por um crime abominável".

"O que você fez com aquela garotinha, o que aconteceu com ela, só você sabe. Talvez o tempo revele o terrível segredo que você carrega no peito."

As buscas foram extensas. Centenas de voluntários varreram a região. Folhetos foram distribuídos, e um apelo por informações foi divulgado no rádio. O canal próximo à casa foi esvaziado ao longo de 8 km. O rio foi dragado.

Diante disso, não havia mais nada a fazer a não ser esperar que Nodder cumprisse sua sentença.

Mas sua sorte acabou em 6 de junho daquele ano. Uma família andava de barco pelo rio Idle, a alguns quilomêtros correnteza abaixo de Hayton, quando notou um objeto estranho na água.

Quando a polícia chegou, encontrou um corpo preso em um sorvedouro e o levou para um pub próximo, onde Wilfred Tinsley identificou sua filha por causa das roupas.

Ferimentos no pescoço indicavam que ela havia sido enforcada com um cordão. Nodder foi acusado de homicídio.

Nodder foi enforcado na prisão Lincoln ainda alegando ser inocente
Nodder foi enforcado na prisão Lincoln ainda alegando ser inocente
Foto: cowrin / BBC News Brasil

A Justiça agiu rapidamente. Em novembro, pela segunda vez em um ano, ele foi a julgamento. Desta vez, apresentou evidências, insistindo que havia apenas colocado Mona no ônibus.

Ao longo de dois dias, sua defesa argumentou - sem sucesso - que nada provava diretamente que ele havia matado a menina e que não tinha motivos fazê-lo.

Ao sentenciar Nodder à pena de morte, o juiz declarou que a "Justiça demorou, mas conseguiu pegá-lo".

Em 30 de dezembro de 1937, Frederick Nodder foi enforcado na prisão Lincoln.

Com o caso encerrado, os Tinsley finalmente puderam sofrer por sua perda. Os ecos do assassinato se perpetuaram e, junto com suas reviravoltas e revelações, levaram a uma nova forma de fazer justiça pelos mortos.

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