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Tensão entre Fernández e Bolsonaro deve alterar Mercosul

Para diplomatas e especialistas, ajustes serão necessários em razão das visões contrastantes dos presidentes de Brasil e Argentina

29 out 2019 - 07h58
(atualizado às 08h06)
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A tensão entre Jair Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, deve alterar normas do Mercosul, na avaliação de diplomatas e especialistas. A visão mais protecionista de Fernández contrasta com as políticas liberalizantes do governo brasileiro. Diante do alto grau de interdependência econômica, ajustes serão necessários.

Fernández comemora vitória nas eleições gerais da Argentina
27/10/2019
REUTERS/Agustin Marcarian
Fernández comemora vitória nas eleições gerais da Argentina 27/10/2019 REUTERS/Agustin Marcarian
Foto: Reuters

Segundo fontes ouvidas pelo Estado, o Brasil descarta a redução imediata da Tarifa Externa Comum (TEC) na próxima reunião do bloco, em dezembro, pouco antes da posse de Fernández. A intenção é que a tarifa cobrada sobre produtos de fora do Mercosul, hoje em 14% em média, fosse reduzida pela metade ao fim de períodos de quatro, seis ou oito anos, dependendo do setor econômico. Agora, o compasso é de espera para ver a direção que toma a Argentina.

Já em relação aos acordos comerciais, a previsão é que as negociações já em curso continuem - estão em andamento tratados com Canadá, Cingapura e Coreia do Sul. A saída do Brasil do Mercosul, segundo fontes do governo, está descartada. Se a Argentina for intransigente, a hipótese mais provável é negociar a flexibilização do bloco, para transformá-lo no que vem sendo chamado de "Mercosul Flex" - e abandonar a ideia de união aduaneira, como é hoje.

Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior, prevê uma relação fria entre os dois, mas não acredita que Fernández coloque entraves no acordo de livre-comércio com a União Europeia, que criticou em junho. "Era um discurso eleitoral. A Argentina quer o acordo tanto quanto o Brasil. Eles têm interesse em vender produtos agrícolas para a Europa", disse.

Um eventual afastamento, segundo Barral, afetaria produtos brasileiros industrializados, especialmente nos setores automotivos, calçadista e têxtil. "A Argentina é um dos poucos países para o qual temos exportação de industrializados, justamente por conta do Mercosul. Não há outro mercado para o qual o Brasil pode exportar rapidamente produtos industriais."

O presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, lembra que o comércio entre os dois países caiu muito neste ano com a crise argentina. Segundo ele, Brasil e Argentina já têm "problemas suficientes" e cita as negociações entre EUA e China, que podem obrigar os chineses a comprar mais produtos americanos, afetando exportações argentinas e brasileiras.

"Não adianta os presidentes trocarem farpas. Ideologia é uma atividade abstrata que não aumenta exportações. O que exportamos são bens e serviços."

 

A tensão também preocupa diplomatas. Juan Pablo Lohle, ex-embaixador argentino no Brasil, diz que nunca viu tanta animosidade entre líderes dos dois países na história recente. "Se Bolsonaro quer abrir o Mercosul, é uma posição respeitável, mas que não deveria ser discutida pela imprensa", afirma.

Recentemente, Bolsonaro sugeriu "afastar" a Argentina do bloco, caso Fernández travasse a abertura comercial. Para Lohle, o desfecho da briga depende do resultado de outras eleições na região. "Precisamos ver o que ocorre no Uruguai, pois pesquisas apontam que a Frente Ampla (esquerda, no poder há 15 anos) pode perder. A tendência seria os uruguaios costurarem essa relação."

Para Jorge Hugo Herrera Vegas, também ex-embaixador no Brasil, declarações atravessadas podem causar transtornos reais. "A relação entre os dois países é de Estado, não de governos. Desde 1983", lembrou.

Ontem, Bolsonaro voltou a criticar Fernández, que pediu a libertação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante discurso em Buenos Aires. "Lamento. Não tenho bola de cristal, mas acho que a Argentina escolheu mal", disse o brasileiro durante visita aos Emirados Árabes. "O primeiro ato do Fernández foi 'Lula livre', dizendo que está preso injustamente. Já disse a que veio."

 

O que pode conter o duelo é a interdependência econômica. A Argentina é o quarto maior parceiro comercial do Brasil, atrás de China, EUA e UE. "Não há dúvida de que eles não se entendem, mas a realidade dos países se sobrepõe às vontades individuais", disse o ex-embaixador brasileiro na Argentina José Botafogo Gonçalves. "A interdependência é grande."

 

De acordo com ele, o Mercosul precisa se atualizar por outra razões. "A TEC tem de mudar - e nisso o Paulo Guedes tem razão. Precisamos de novas regras aduaneiras, para passarmos de uma zona de proteção para uma zona de competição."

Para Oliver Stunkel, da Fundação Getúlio Vargas, outro problema é a narrativa liberal do Brasil, que se enfraqueceu com a derrota de Mauricio Macri e a crise no Chile. "Os kirchneristas, a princípio, não querem sair do Mercosul, mas também não pretendem acompanhar a liberalização rápida que o Brasil propõe." / LORENNA RODRIGUES (BRASÍLIA), RODRIGO CAVALHEIRO (BUENOS AIRES), JULIA LINDER (ABU DHABI), LUCIANA DYNIEWICZ, LUIZ RAATZ e CARLA BRIDI

Estadão
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