Trump inelegível: o que é a cláusula de insurreição usada contra ex-presidente
A Seção 3 da 14ª Emenda proíbe aqueles que 'se envolveram em insurreição ou rebelião' contra o poder constituído de ocupar cargos federais; decisão contrária a Trump foi a primeira vez que dispositivo constitucional foi usado para impossibilitar uma candidatura presidencial.
Uma cláusula da Constituição dos Estados Unidos raramente usada em decisões judiciais resultou nesta terça-feira (19/12) na decisão da Suprema Corte do Colorado de tirar Donald Trump da corrida eleitoral de 2024 no Estado.
A cláusula evocada foi a Seção 3 da 14ª Emenda, que proíbe aqueles que "se envolveram em insurreição ou rebelião" contra o poder constituído de ocupar cargos federais.
É a primeira vez que a Seção 3 da 14ª Emenda é usada para impossibilitar uma candidatura presidencial. A ação contra Trump foi apresentada pelo grupo Cidadãos pela Responsabilidade e Ética em Washington (Crew, na sigla em inglês) e mira o papel dele nos ataques ao Capitólio em 2021.
A decisão da corte estadual está em suspenso até janeiro, aguardando um recurso, e não se aplica a outros Estados.
O julgamento final provavelmente ficará a cargo da conservadora Suprema Corte dos EUA que Trump ajudou a moldar.
No caso do Colorado, parece que os autores da ação pretendiam partir dali para levar os seus argumentos à mais alta corte do país.
Inicialmente apoiado por liberais, o argumento jurídico relativo à cláusula constitucional ganhou mais destaque nos últimos meses, à medida que alguns conservadores também o abraçaram.
A Suprema Corte do Colorado foi a primeira a reconhecer o argumento, tirando Trump da eleição presidencial no Estado em 2024.
Até então, várias ações contra Trump com argumento parecido não tiveram sucesso em outros Estados.
Uma ação judicial em New Hampshire foi rejeitada; um juiz em Michigan decidiu que se tratava de uma questão "política" que deveria ser decidida pelo Congresso, não pelo Estado; e um tribunal em Minnesota rejeitou a tentativa antes das eleições primárias, mas deixou a porta aberta para os peticionários apresentarem outra contestação nas eleições gerais.
A estratégia jurídica é um último esforço para barrar a candidatura de um ex-presidente que continua popular na sua base.
Apesar dos crescentes problemas na Justiça, Trump continua a ser o favorito para a candidatura presidencial republicana e está empatado com o presidente Joe Biden nas pesquisas eleitorais.
A campanha de Trump afirmou que a ação no Colorado tem como objetivo "esticar a lei até um ponto irreconhecível" e não tem base "exceto nas mentes daqueles que a defendem".
"Os líderes do Partido Democrata estão num estado de paranoia devido à crescente e dominante liderança que o presidente Trump acumula nas pesquisas", disse o porta-voz Steven Cheung.
"Eles perderam a fé na fracassada presidência de Biden e agora estão fazendo tudo o que podem para impedir que os eleitores americanos os expulsem do cargo em novembro [de 2024]".
O advogado de Trump no caso do Colorado argumentou que as decisões em Michigan e Minnesota são evidência de "um consenso emergente em todo o judiciário".
"Os autores da ação estão pedindo a este tribunal que faça algo que nunca foi feito na história dos Estados Unidos", afirmou o advogado Scott Gessler. "As evidências não chegam nem perto de permitir que o tribunal faça isso."
Qual é o argumento?
A 14ª Emenda foi ratificada após a Guerra Civil Americana, e a Seção 3 foi inserida para impedir que os separatistas retornassem a cargos governamentais anteriores assim que os Estados do sul voltassem a aderir à União.
A cláusula foi usada contra pessoas como o presidente dos Estados Confederados Jefferson Davis e seu vice-presidente Alexander Stephens, mas raramente foi invocada desde então.
A cláusula ressurgiu na sequência de esforços de Trump para anular a sua derrota eleitoral de 2020, que culminou no ataque ao Capitólio em janeiro de 2021.
Após o ataque, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou o impeachment do presidente sob a acusação de "incitamento à insurreição".
Nos EUA, o impeachment é a primeira parte — as acusações — de um processo político através do qual o Congresso pode destituir um presidente do cargo. Se a Câmara votar por aprovar artigos de impeachment, o Senado deve realizar um julgamento.
Após uma eventual decisão pela condenação, o Senado pode realizar uma segunda votação, por maioria simples, para impedir um presidente de voltar a exercer o cargo.
Mas, no caso do Capitólio, o Senado não conseguiu alcançar a maioria de dois terços necessários nem na primeira etapa, para condenar Trump.
A cláusula se aplica a Trump?
A organização Free Speech For People tem argumentado que sim, Trump deve ser impedido de concorrer às eleições por conta da Seção 3 da 14ª Emenda.
No ano passado, o grupo apresentou ações contra cinco parlamentares que apoiavam Trump e que foram acusados de serem "insurrecionistas".
Uma das ações — contra a parlamentar da Geórgia Marjorie Taylor Greene — foi julgada no tribunal, mas acabou derrotada.
A 14ª Emenda não foi escrita apenas para ser aplicada no pós-Guerra Civil, mas também contra a futuras insurreições, argumenta Ron Fein, o diretor jurídico da organização.
Ele disse à BBC que o ataque ao Capitólio conseguiu "atrasar a transferência pacífica de poder pela primeira vez na história da nossa nação, o que é mais longe do que os confederados alguma vez conseguiram chegar".
"Os candidatos específicos que acusamos em 2022 participaram ou ajudaram nos esforços que levaram à insurreição", argumentou Fein.
Todos estes casos, disse ele, estabeleceram importantes precedentes legais que podem ser aplicados para mostrar que "Trump é o principal insurrecionista".
No Novo México, uma ação apresentada pelo grupo Cidadãos pela Responsabilidade e Ética em Washington (Crew) fez com que Couy Griffin, um comissário do condado local que participou do ataque ao Capitólio, fosse retirado do cargo sob a Seção 3 — a primeira decisão do tipo desde 1869.
Quais serão os próximos passos?
A ação no Colorado foi apresentada pelo grupo Crew em nome de seis residentes do Estado.
Apesar das suas tentativas mal sucedidas no Michigan e em Minnesota, a organização Free Speech For People também indicou que apresentará novas ações do tipo. A vitória no Colorado provavelmente impulsionará ainda mais ações assim.
Cada ação já suscitou ou suscitará inevitavelmente um objeção por parte dos candidatos — desencadeando processos que poderão, em última instância, chegar à Suprema Corte dos EUA.
O argumento jurídico ganhou força em agosto, quando Trump foi acusado de subversão eleitoral em dois processos criminais distintos.
Naquele mesmo mês, os juristas conservadores William Baude e Michael Stokes Paulsen escreveram em um artigo que a Seção 3 é "autoexecutável, operando como uma desqualificação imediata ao cargo, sem a necessidade de ação adicional por parte do Congresso".
Trump poderia, portanto, ser considerado inelegível para a votação "por todos os funcionários, estaduais ou federais, que julgam as qualificações [dos candidatos]", concluiu a dupla de juristas.
Baude e Paulsen são membros da Sociedade Federalista, um grupo conservador muito influente.
Eles acreditam que a Constituição deve ser interpretada como os seus autores pretendiam na origem.
Até a Suprema Corte, com a sua maioria conservadora e o trio de juízes nomeados por Trump, pode ser receptiva ao argumento, avalia Jeffrey Sonnenfeld, reitor da Escola de Administração de Yale que apoia a perspectiva Baude e Paulsen.
Com os eleitores republicanos se dirigindo às primárias em menos de dois meses, qualquer ação deve ser decidida rapidamente.
O que dizem as críticas ao argumento jurídico?
Entretanto, há vários eminentes críticos do uso da Seção 3 da 14ª Emenda contra Trump.
Num artigo de opinião para a rede Bloomberg, o professor liberal Noah Feldman escreveu: "Donald Trump é claramente inadequado para ser presidente. Mas cabe aos eleitores impedi-lo. Palavras mágicas do passado não nos salvarão".
O presidente do Partido Republicano em New Hampshire, Chris Ager, afirmou não ser um apoiador de Trump, e sim "neutro" — mas vê com preocupação as iniciativas.
"Todas estas tentativas são ruins para o país. Produzir uma lógica legalista tortuosa para tentar impedir as pessoas de votarem em quem elas querem é um argumento de estilo soviético, de repúblicas das bananas", disse Ager.
Até Brad Raffensperger, um republicano que já foi alvo da ira de Trump como a principal autoridade eleitoral na Geórgia, criticou as ações judiciais evocando a cláusula constitucional. Ele argumenta que elas são "apenas a mais nova forma de tentar causar um curto-circuito nas urnas".
Mas em New Hampshire, o primeiro Estado do país a votar nas primárias republicanas, um importante advogado republicano que concorreu ao Senado em 2020 com o apoio de Trump tem uma opinião diferente.
"Para mim, trata-se puramente da Constituição", disse Bryant "Corky" Messner. "A Constituição dos EUA é mais importante do que qualquer indivíduo, seja Donald Trump ou qualquer outro."
Messner quer que os tribunais apresentem o seu veredito para que ele possa decidir se apoia ou não Trump.
"Se ele acabar sendo indicado pelo Partido Republicano e não for desqualificado, votarei nele", disse.