Um mês após furacão, Haiti ainda sofre com destruição, saques e milhares de desabrigados
Nesta semana, um navio carregado com 2,5 mil toneladas de alimentos e materiais de construção aportou em Les Cayes, uma das cidades do Haiti mais castigadas pela passagem do furacão Matthew um mês atrás.
Mas o que seria uma boa notícia se transformou em pesadelo: autoridades locais ignoraram recomendação da ONU de que não havia segurança suficiente para descarregar. Em pouco tempo, a distribuição de ajuda se transformou em confronto entre forças de segurança haitianas e uma população revoltada.
Um jovem de 14 anos foi morto a tiros na confusão e uma multidão começou a carregar seu corpo pelas ruas da cidade. Em seguida, houve saques e confrontos entre homens armados e seguranças privados de estabelecimentos locais, segundo afirmou à BBC Brasil o comandante das forças da ONU no Haiti, o general brasileiro Ajax Porto Pinheiro.
Esse foi um dos incidentes de segurança mais graves desde a passagem do furacão, em 4 de outubro. Ainda há 140 mil desabrigados no país, e 1,4 milhão de pessoas precisam de assistência humanitária, segundo estimativa das Nações Unidas.
"Nós explicamos às autoridades de Les Cayes que não havia depósito para armazenar os mantimentos do navio, nem pessoal para proteger a operação ou distribuir a ajuda. Precisaríamos fazer no mínimo 500 viagens de caminhão. Então sugerimos que o navio fosse (à capital) Porto Príncipe onde há mais estrutura, e descarregasse lá", contou Pinheiro.
Mas a Prefeitura de Les Cayes decidiu descarregar o material por conta própria em uma pequena base local da Guarda Costeira haitiana.
"O navio estava sendo descarregado no porto, mas algo saiu errado nas docas e um adolescente caiu baleado", disse o prefeito de Les Cayes, Gabriel Fortuné, ao site de notícias local Haiti Libre. Ele disse que o caso está sendo investigado e pediu calma à população.
Segundo o general brasileiro, o navio partiu e a carga ainda não distribuída permaneceu à vista da população, o que está elevando a tensão - mas como o governo do Haiti se encarregou da operação, os militares do Brasil não estão se envolvendo diretamente na questão.
Pinheiro afirmou que um fator que vem dificultando a resposta aos estragos do furacão é que muitas organizações não governamentais e entidades de assistência estão agindo por conta própria, sem coordenar esforços com a OCHA, escritório de coordenação de ajuda humanitária da ONU.
"A tensão já caiu bastante desde o furacão, mas ainda está ocorrendo um saque (de comboio de ajuda humanitária) a cada dois dias. As organizações abandonam as cargas quando começa o saque."
Desde o furacão, as forças da ONU já atuaram em ao menos dois incidentes do tipo, usando munição não letal e gás lacrimogênio.
Um deles ocorreu quando Ajax e suas tropas supervisionavam o descarregamento de mantimentos de um navio próximo à cidade de Dame Marie. Segundo ele, três barcos pequenos haviam sido contratados para pegar os mantimentos no navio e os levar até a praia.
Contudo, um dos barqueiros locais desembarcou comida muito próximo de uma multidão - o que deu início à confusão. "Nossos militares usaram balas de borracha para dispersar a multidão, mas um policial do Haiti usou uma espingarda com munição real", disse.
O agente local acabou baleando uma jovem de 16 anos, que, mesmo socorrida pelos brasileiros, morreu no hospital.
A BBC Brasil conversou com duas das maiores organizações humanitárias presentes no Haiti: os Médicos Sem Fronteiras e a Cruz Vemelha.
Ambas operam de forma integrada com outras organizações para poder atender mais pessoas, mas não utilizam a escolta armada oferecida pelas Nações Unidas para estabelecer uma relação de maior confiança com a população.
A Cruz Vermelha, por exemplo, opera com representantes das comunidades e usa moradores voluntários para organizar a distribuição de ajuda - o que tem evitado conflitos até agora, segundo Nicole Robicheau, porta-voz da organização.
Desafio logístico
Os Médicos Sem Fronteiras e a Cruz Vermelha disseram à reportagem que um dos maiores desafios um mês após a tragédia tem sido levar ajuda constante para centenas de pequenos vilarejos espalhados pelas regiões montanhosas e de difícil acesso do sul do Haiti.
Esse é o caso de Paillant, que tem 30 mil habitantes. Segundo o prefeito da cidade, Jude Brice, os moradores até avistam comboios de caminhões carregados de mantimentos em uma estrada próxima, mas a maioria dos veículos passa direto, rumo a cidades mais castigadas pela tempestade.
Apenas um ou outro entram ali para distribuir comida e cobertores.
"Estamos pedindo materiais, como cimento, ferro e telhas para reconstruir as casas totalmente destruídas. Também precisamos de sementes para plantar feijão, milho e couve, pois as plantações foram arrasadas. Estamos procurando financiamento", disse.
Chegar a localidades como Paillant é um desafio - algumas só são atingidas de moto ou a pé.
"Ainda há muitas pessoas vivendo em condições desafiadoras, principalmente nas áreas mais remotas. Tem sido um grande desafio chegar a essas comunidades", contou Nicole Robicheau, da Cruz Vermelha.
Mas o que mais assusta as organizações humanitárias é a mesma doença que já castigou o Haiti após o terremoto de 2010: a cólera. Desde a passagem do furacão, 3,7 mil casos de possível contaminação foram reportados às autoridades.
Segundo Paul Brockman, representante dos Médicos Sem Fronteiras, a falta de dados impede que se diga com certeza se o Haiti está novamente à beira de uma nova epidemia de grandes proporções.
"Em outubro, novembro e dezembro a cólera sempre volta, por causa da estação de chuvas. Essa doença pode aparecer em áreas remotas e se espalhar muito rapidamente. Por isso há o risco de uma nova epidemia. As pessoas podem não saber que estão contaminadas", disse à BBC Brasil.
Especialistas afirmam acreditar que tropas do Nepal que faziam parte da força de paz da ONU acidentalmente levaram o cólera do sul da Ásia ao Haiti - onde uma epidemia da doença matou 9 mil pessoas em 2010.
Em localidades mais afetadas pelo furacão, fontes de água potável podem ter sido contaminadas pela bactéria quando tiveram contato com água do mar ou de enxurrada - afetada por dejetos de latrinas comuns na área rural.
Um exemplo de localidade que preocupa a ONG é o vilarejo de Barradens, que tem 6 mil moradores e fica na província de Nippes. "A vila fica nas montanhas e ficou totalmente submersa após 24 horas de chuvas. A água chegou a três metros de altura", descreveu Brockman.
"O centro de tratamento de cólera que havia na região foi varrido pela enxurrada", acrescentou ele. O local agora está sendo atendido por uma clínica móvel dos Médicos Sem Fronteiras.
Resposta
A estratégia de montar centros de atendimento médico móveis em diversas regiões também está sendo adotada pela Cruz Vermelha.
Segundo Robiechau, a entidade também está distribuindo kits de reconstrução, que consistem em duas chapas de cobertura, para servir de telhado, uma serra, um martelo e pregos, e treinando os moradores para reconstruírem saus habitações de forma segura.
Também estão sendo distribuídos kits de cozinha, com panelas e talheres para a preparação de alimentos doados por organizações não governamentais e pelo Programa Mundial de Alimentos.
Esse material ainda não chegou a Paillant. "Muitas vezes as pessoas até recebem a comida, mas como suas casas foram muito danificadas, elas não tem como preparar o alimento", disse Jude Brice, um dos prefeitos da cidade.
A Cruz Vermelha também levou ao país uma equipe especializada em purificação de águae está distribuindo tabletes com uma substância química que, quando misturada à água usada para consumo, mata a bactéria da cólera.
"Entendo a frustração dessas pessoas (quando a ajuda humanitária demora a chegar). É difícil atender a todos. Por enquanto estamos nos concentrando nos mais vulneráveis, mas sei que é difícil ver aqueles grandes caminhões carregados de ajuda só passando. Chegar a todos os lugares está sendo um desafio logístico", lamentou Robicheau.
Eleições
Enquanto organizações humanitárias, militares da ONU e autoridades locais se esforçam para levar ajuda às comunidades que aos poucos tentam se recuperar do furacão, um novo desafio se aproxima: a realização das eleições gerais que deveriam ter ocorrido no ano passado, mas foram adiadas diversas vezes devido a crises políticas, ondas de violência e, por último, Matthew.
A nova data é o próximo dia 20 de novembro.
Segundo Ajax Pinheiro, 260 locais de votação foram destruídos pelo furacão. "Temos 1,5 mil barracas de 3 por 6 metros. Em alguns locais onde escolas foram destruídas, a votação vai ser nessas barracas."
A operação de socorro às vítimas do furacão será diminuída a partir deste sábado para que as forças da ONU comecem a se dedicar à segurança do pleito, contou o general. Mesmo assim, 160 militares brasileiros e quatro blindados permanecerão no sul do país para atender as vítimas do furacão.
Para o general, há ao menos um aspecto positivo: as diversas forças políticas que disputam o pleito parecem ter entendido que o país enfrenta uma nova catástrofe e reduziram o número de manifestações e denúncias contra seus oponentes - o que diminuiu a tensão política.
No início do ano, a eleição foi cancelada depois que diversos centros de votação foram incendiados ou atacados a tiros. Pinheiro disse ter esperança de que esse tipo de ocorrência não se repita no dia 20.