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"Não se combate fome dizendo que ela não existe", diz ex-FAO

Ex-diretor da FAO diz que assunto não deve ter ideologia e defende programas sociais de transferência de renda

25 jul 2019 - 05h12
(atualizado às 07h54)
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BRASÍLIA - Diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) até o mês passado, o engenheiro agrônomo José Graziano afirmou que "não se combate a fome dizendo que ela não existe". Ele defendeu ainda os programas sociais de transferência de renda. "Se tirar (esses programas), voltaríamos a ter números na ordem de 20 milhões ou mais que passam fome", afirmou Graziano.

Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro causou polêmica ao dizer que é "uma grande mentira" que pessoas passam fome no Brasil. Questionado, recuou e afirmou que "alguns passam fome". "Adotou-se (em governos anteriores) que distribuição de riqueza é criar bolsa. É o país das bolsas. O que faz tirar o homem da miséria é o conhecimento", declarou Bolsonaro na ocasião.

Produtor observa vaca agonizante devido à falta de água
Produtor observa vaca agonizante devido à falta de água
Foto: Ricardo B. Labastier / JC Imagem

"A historiografia da fome é real, tem uma base, não foi inventada", disse Graziano ao Estado.

O sr. assumiu a FAO em 2011. O que mudou no mundo desde então no combate à fome?

Nós conseguimos uma redução substancial da fome, se você comparar aos anos 2000, quando falávamos em 1 bilhão de pessoas passando fome. Nós estamos hoje falando em 820 milhões. Foi um grande progresso. Isso se deve em grande parte a uma mudança de estratégia: o combate à fome antes era direcionado exclusivamente ao aumento da produção agrícola, à disponibilidade de alimentos. Achava-se que as pessoas passavam fome porque não tinham alimentos. Isso é só parte das verdade. Hoje a maior parte das pessoas que passa fome não é porque não têm alimentos. O mundo produz hoje mais do que o suficiente para alimentar toda a população mundial, ainda joga fora um terço da produção. Hoje o grande problema é o acesso aos alimentos, as pessoas não têm como pagar, porque não têm emprego ou terra para plantar. Ou porque uma seca destruiu a terra que tinha.

Qual o impacto da crise econômica na segurança alimentar?

Total. Da nossa análise, 85% dos países em desenvolvimento têm na crise econômica um elemento central no aumento da fome. Isso é particularmente visível na América do Sul, a região que mais sofreu com a crise. Estava crescendo muito rapidamente, exportadora de matérias-primas, commodities agropecuárias. Com a redução da demanda na China e a queda do preço das commodities, isso veio abaixo. E os países reduziram a cobertura de programas sociais. A América Latina chegou a ter 120 milhões de pessoas beneficiadas por programas de transferência de renda. Hoje, por mais que se mantenha o número, os valores são menores em termos reais, não tiveram reajuste, pararam de crescer. E aumentou o desemprego. Isso deixa essas populações expostas.

Qual importância de programas de transferência de renda?

A Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE mostra que 28 milhões de pessoas no Brasil hoje têm alguma forma de desocupação. Essas pessoas não têm acesso a uma renda que propicie alimentação adequada. Ou são subnutridos ou candidatos à subnutrição. Se tirar programas sociais de transferência de renda, voltaríamos a ter números na ordem de 20 milhões ou mais que passam fome. Felizmente, o Brasil mantém uma cobertura social que impede que isso aconteça.

Há risco de o Brasil voltar pro mapa da fome?

O ponto mínimo da fome no Brasil foi em 2013, 2014, que foi o ponto mínimo do desemprego. A partir daí, o desemprego dispara e a fome começa a crescer. Olhando para trás, temos 400 mil, 500 mil pessoas a mais passando fome no Brasil comparando com o ponto mínimo em 2013. O Brasil ainda não voltou ao mapa da fome e espero que não volte. Mas, para isso, precisa ser levado a sério. Não se combate a fome dizendo que ela não existe. Tem que ter uma política ativa de combate à fome, tem que ser parte das preocupações centrais. Não estou falando apenas do governo federal, não. Também dos governos estaduais, sociedade civil, setor privado. Ninguém se beneficia com a fome. O único número aceitável é zero.

O presidente Jair Bolsonaro disse que ninguém passa fome no Brasil e, depois, voltou atrás.

O presidente é do Vale do Ribeira. Não sei se ele costuma ir lá, mas é um dos grandes bolsões de fome no Estado de São Paulo. É um lugar onde a fome sempre foi um problema. Toda essa historiografia da fome é real, tem uma base, não foi inventada. Hoje eu diria que no Brasil o problema da fome está relativamente equacionado. Há fome, há bolsões de fome, mas a gente sabe onde está e o que tem que fazer. O grande problema são as formas de má nutrição: anemia nas mulheres, nanismo nas crianças e a obesidade nos adultos.

O sr. já declarou que o combate à fome não deve ter ideologia...

Acho um pouco cedo para avaliar o governo Bolsonaro. Ele tem tido um componente ideológico em muitas de suas ações, mas eu prefiro dizer que não podemos ter ideologia no combate à fome. Não podemos submeter um direito fundamental à pergunta se o cara é de direita ou esquerda, se é do PT ou não é. Isso não pode ser o parâmetro de decisão.

A Anvisa criou um marco legal para a classificação de agrotóxicos seguindo o padrão europeu. É uma boa classificação?

A FAO, junto com a OMS, dá esses limites dos resíduos de agrotóxicos, essas normas. O Brasil está dentro das normas, está dentro dos limites. Mas os nossos limites (da FAO) são muitos maiores do que os adotados nos países europeus, essa é a verdade. O Brasil tem um limite de glifosato na soja, de resíduo, que é 200 vezes maior do que na União Europeia. Para dar um exemplo de um produto que tem grande controvérsia, por ter riscos de ser cancerígeno. Somos muito mais flexíveis, eu diria. Até que ponto isso é prejudicial à saúde humana é difícil de dizer, mas é um risco a que a população se expõe se esses limites forem tão flexíveis.

Quais são as possibilidades de combate a esse aumento crescente de obesidade?

As políticas recomendadas têm muitas. Por exemplo, o Chile adota um padrão de etiqueta frontal no alimento: tem um selo preto se o alimento possui muito sal, açúcar ou óleo acima do permitido. Já o México teve grande sucesso quando aumentou o imposto de acordo com o teor de açúcar nos refrigerantes, reduziu drasticamente o consumo de bebidas açucaradas. O que precisa é fazer as pessoas comerem mais produtos frescos e menos produtos ultraprocessados. Quem sabe o que tem dentro de uma salsicha?

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