Nomeações ao Oscar de 'Ainda estou aqui' ajudam a tratar feridas não cicatrizadas da ditadura militar
Filme cumpre uma função política, sem ser panfletário, nos fazendo lembrar de nosso passado recente, da tortura institucionalizada da ditadura militar no período entre 1964 e 1985
O filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles, que ganhou três indicações ao Oscar (na categoria de filme estrangeiro, de melhor filme e de melhor atriz, com Fernanda Torres), já está batendo um recorde histórico para o cinema brasileiro, mesmo se não levar a estatueta pra casa.
Até hoje, "Orfeu Negro", de Marcel Camus, que ganhou o Oscar de filme estrangeiro representando a França, e consagrou a música "Manhã de Carnaval", é referência internacional para falar de filme brasileiro, ao lado de "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte, que conquistou Cannes em 1962.
Com as indicações de "Central do Brasil", em 1999, Fernanda Montenegro, a mãe de Nanda Torres, foi indicada como melhor atriz na categoria principal, mas ao final, Gwyneth Paltrow, de "Shakespeare Apaixonado", arrematou o prêmio. Sucesso internacional, "Cidade de Deus", que não ganhou indicação de melhor filme estrangeiro em 2004, mas concorreu a quatro Oscars na categoria principal - de direção (Fernando Meirelles), de roteiro adaptado (Bráulio Mantovani); de montagem (Daniel Rezende) e de fotografia (César Charlone).
Nada que se compare, no entanto, ao sucesso do longa-metragem "Ainda estou aqui", baseado em romance original do escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado cassado Rubens Paiva, sobre a sua própria família. Um dos motivos, certamente, se deve ao carisma de sua protagonista, Fernanda Torres, atriz popular pelas suas inúmeras participações na televisão, escritora, roteirista, e filha de uma das maiores atrizes brasileiras, Fernanda Montenegro.
O autor do livro que originou a história, Marcelo Rubens Paiva, é igualmente um símbolo para os jovens de sua geração, pelo seu best seller Feliz ano velho, de 1982, em que narra sua vida e o acidente trágico que o deixou paraplégico. A própria Fernanda Torres destaca em entrevistas sua admiração pelo autor.
A trajetória de sucesso do filme não se limita ao feito cinematográfico, nem ao virtuosismo com que Walter Salles recria a família e uma época. A obra vem suscitando depoimentos emocionantes sobre nosso país, que assistiu a uma onda de violência crescente e antidemocrática sob a presidência de Jair Bolsonaro, e que culminou com uma tentativa de golpe após a vitória de Lula, em 2022.
"Ainda estou aqui" vem nos lembrar ainda de nosso passado recente, da tortura institucionalizada da ditadura militar no período entre 1964 1985, e de feridas nunca devidamente cicatrizadas. Muitos jovens e adolescentes que foram ao cinema nunca tinham ouvido falar na ditadura militar, ainda mais do ponto de vista de outro jovem.
Os coprotagonistas desta história são os 5 filhos do casal, Vera (Valentina Herszage, Maria Manoella), a mais velha; Eliana (Luiza Kosovski, Eliana Paiva), Ana Lúcia (Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha), Marcelo (Guilherme Silveira, Antonio Saboia) e Maria Beatriz (Cora Mora, Olívia Torres).
Aplaudir o feito de Fernanda Torres ao conquistar o Globo de Ouro de melhor atriz, inédito para uma atriz brasileira, disputando uma vaga com atrizes do porte de Angelina Jolie, Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet, além disso, trouxe uma lufada de ar revigorante para o nosso cinema.
Nas redes, o filme soou como uma resposta ao descaso devotado ao cinema e à arte em geral pela extrema direita que vê nas políticas públicas de apoio ao cinema nacional e à cultura um desperdício de dinheiro público. O filme de Salles contou com recursos privados das produtoras VideoFilmes, criada pelo cineasta e seu irmão João Moreira Salles, RT Features, criada por Rodrigo Teixeira, e a produtora francesa MACT Productions.
O que faz com o filme cumpra essa função política, sem ser panfletário, de forma tão contundente é a sua delicada reconstituição de época, abrilhantada pela performance impecável de Fernanda Torres e de Selton Mello, dos jovens atores que representam os cinco filhos da família Paiva, e da sua visão de mundo a partir do olhar de uma mulher dedicada, de classe média, que vive feliz com o homem que amava e com sua família até ser confrontada por um espetáculo de horror e devastação. Do dia para noite, seu marido é retirado brutalmente de casa e com ele se vai também a perspectiva de uma vida familiar tranquila.
Essa composição de personagem desenvolvida com maestria pelo roteiro e com discrição pela atriz evoca não somente nossas lembranças mais profundas daqueles anos de chumbo, mas também da vida de mulher que se vê diante de um desafio pessoal extraordinário, com a responsabilidade de criar cinco filhos sozinha.
Paiva era um homem aberto às mudanças do mundo e da sociedade, mas sua jovem esposa, até o seu desaparecimento, apesar de formada, era apenas uma dona de casa sem grande experiência de vida. A cena no banco representa esses conflitos sociais de época. Consciente de que o marido deveria estar morto, Eunice vai ao banco tentar sacar dinheiro. O gerente explica para ela gentilmente que sem a "concordância do marido", ela não poderia fazer saque, regras comuns para as contas conjuntas, mesmo quando as pessoas eram casadas em comunhão universal de bens.
Eunice só obteve o atestado de óbito do marido em 1996, tendo de travar longa batalha para chegar a essa vitória, que ela comemorou com fina ironia.
Embora o marido amoroso personificado de forma brilhante por Selton Mello, que fica idêntico ao Rubens Paiva da vida real, até mesmo na forma de sorrir, esteja sempre presente, na memória e nas cenas em família, o filme de Salles é antes de tudo uma homenagem a uma mulher de carne e osso, que sonhou com um país forte e independente, ao som de Tomzé e de Juca Chaves, de Caetano Veloso e Chico Buarque.
Desamparada, ela percebe que vai ter de mudar a sua vida, e decide estudar Direito, tornando-se advogada e uma das maiores ativistas em prol da defesa das terras indígenas, elenco de apoio que cria o clima perfeito para as Fernandas, Torres na maior parte do filme, e Montenegro no desfecho, com Eunice sofrendo de Alzheimer.
Essa visão humanizada, que coloca o sujeito como centro da ação política, e que está no livro, ganha ainda mais força e complexidade a partir da atuação comedida, sensível e elegante de Fernanda Torres.
Luiza Lusvarghi não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.