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Novas descobertas questionam "vocação" do Universo à evolução da vida

Os seres humanos ainda poderiam aparecer mesmo se o nosso Universo fosse muito diferente. De fato, talvez não vivamos no mais hospitaleiro dos universos possíveis.

3 dez 2024 - 11h05
(atualizado em 4/12/2024 às 15h12)
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Cálculos para diferentes valores da densidade de energia escura indicam que nosso Universo não está muito longe de ser o mais favorável possível para o surgimento da vida, mas também que não é o mais ideal. Image credit: NASA, ESA, CSA, STScI, CC BY
Cálculos para diferentes valores da densidade de energia escura indicam que nosso Universo não está muito longe de ser o mais favorável possível para o surgimento da vida, mas também que não é o mais ideal. Image credit: NASA, ESA, CSA, STScI, CC BY
Foto: The Conversation

Os físicos há muito tempo debatem a questão do por que nosso Universo ter permitido a evolução de vida inteligente. Os valores das muitas forças e partículas, representados por cerca de 30 constantes chamadas "fundamentais", parecem se alinhar perfeitamente para que isso tenha acontecido.

Por exemplo, a gravidade. Se ela fosse muito mais fraca, a matéria teria dificuldade para se agrupar e formar estrelas, planetas e seres vivos. E se ela fosse mais forte, isso também criaria problemas. Por que temos tanta sorte?

Uma pesquisa que eu publiquei recentemente com meus colegas John Peacock e Lucas Lombriser sugere agora que nosso Universo pode não ser exatamente ajustado para a vida. Na verdade, talvez não estejamos habitando o mais provável dos Universos possíveis.

Estudamos particularmente como o surgimento de vida inteligente é afetado pela densidade da "energia escura" no Universo. A energia escura se manifesta como uma força misteriosa que acelera a expansão do Universo, mas não sabemos o que ela é.

A boa notícia é que mesmo assim podemos medi-la. A má notícia é que o valor que observamos até agora é muito menor do que o esperado em teoria. Esse quebra-cabeça é uma das maiores questões em aberto na Cosmologia, e foi a principal motivação para nossa pesquisa.

Raciocínio antrópico

Testamos se este chamado "raciocínio antrópico" pode oferecer uma resposta adequada. O raciocínio antrópico é a ideia de que podemos inferir propriedades do nosso Universo a partir do fato de que nós, humanos, existimos. No final dos anos 80, Steven Weinberg, ganhador do Prêmio Nobel de Física, discutiu uma possível solução antrópica para o valor observado da densidade da energia escura.

Weinberg argumentou que uma densidade maior de energia escura aceleraria a expansão do Universo. Isso neutralizaria o esforço da gravidade para aglomerar a matéria e formar galáxias. Menos galáxias significa menos estrelas no Universo. As estrelas são essenciais para o surgimento da vida como a conhecemos, portanto, o excesso de energia escura suprimiria as chances de surgimento de vida inteligente, como os seres humanos.

Weinberg então considerou um "multiverso" de diferentes Universos possíveis, cada um com um conteúdo diferente de energia escura. Esse cenário decorre de algumas teorias de inflação cósmica, um período de expansão acelerada que ocorre no início da história do Universo.

Weinberg propôs que apenas uma pequena fração dos Universos dentro do multiverso, seja real ou hipotético, teria uma densidade de energia escura suficientemente pequena para permitir o surgimento de galáxias, estrelas e, por fim, vida inteligente. Isso explicaria por que observamos uma pequena densidade de energia escura - apesar de nossas teorias sugerirem que ela deveria ser muito maior: simplesmente não poderíamos existir de outra forma.

Número de estrelas (brancas) produzidas em Universos com diferentes densidades de energia escura.
Número de estrelas (brancas) produzidas em Universos com diferentes densidades de energia escura.
Foto: The Conversation

Número de estrelas (brancas) produzidas em Universos com diferentes densidades de energia escura. Em sentido horário, a partir do painel superior esquerdo: sem energia escura, mesma densidade de energia escura do nosso Universo, 30 e 10 vezes a densidade de energia escura do nosso Universo. Crédito: Cortesia de Oscar Veenema, ex-aluno de graduação da Universidade de Durham, agora aluno de doutorado da Universidade de Oxford, CC BY-SA

Uma possível armadilha no raciocínio de Weinberg é a suposição de que a fração de matéria no Universo que acaba em galáxias é proporcional ao número de estrelas formadas. Cerca de 35 anos depois, sabemos que não é tão simples assim. Nossa pesquisa, então, teve como objetivo testar o argumento antrópico de Weinberg com um modelo mais realista de formação de estrelas.

Contagem de estrelas

Nosso objetivo era determinar o número de estrelas formadas ao longo de toda a história de um Universo com uma determinada densidade de energia escura. Isso se resume a um exercício de contagem.

Primeiro, escolhemos uma densidade de energia escura entre zero e 100.000 vezes o valor observado. Dependendo da quantidade, a gravidade pode manter a matéria unida mais ou menos facilmente, determinando como as galáxias podem se formar.

Em seguida, estimamos a quantidade anual de estrelas formadas nas galáxias ao longo do tempo. Isso decorreu do equilíbrio entre a quantidade de gás frio que pode alimentar a formação de estrelas e a ação oposta dos fluxos de saída galácticos que aquecem e empurram o gás para fora das galáxias.

Em seguida, determinamos a fração de matéria comum que foi convertida em estrelas durante toda a vida (passada e futura) de um determinado modelo de Universo. Esse número expressa a eficiência desse Universo na produção de estrelas.

_Porcentagem de matéria comum convertida em estrelas, ao longo de toda a história do Universo, para diferentes densidades de energia escura_.
_Porcentagem de matéria comum convertida em estrelas, ao longo de toda a história do Universo, para diferentes densidades de energia escura_.
Foto: The Conversation

Porcentagem de matéria comum convertida em estrelas, ao longo de toda a história do Universo, para diferentes densidades de energia escura. Credit: Image readapted from D. Sorini, J. A. Peacock, L. Lombriser, in Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, Volume 535, Issue 2, Pages 1449-1474. Fonte: https://doi.org/10.1093/mnras/stae2236, CC BY-SA

Em seguida, presumimos que a probabilidade de gerar vida inteligente em um Universo é proporcional à sua eficiência de formação de estrelas. Como mostra a figura acima, isso sugere que o Universo mais hospitaleiro contém cerca de um décimo da densidade de energia escura observada em nosso Universo.

Portanto, nosso Universo não está muito longe de ser o mais favorável possível para a vida, mas também não é o mais ideal.

Mas para validar o raciocínio antrópico de Weinberg, devemos imaginar a escolha de uma forma de vida inteligente aleatória no multiverso e perguntar a ela qual densidade de energia escura ela observa.

Descobrimos que 99,5% delas teriam uma densidade de energia escura maior do que a observada em nosso Universo. Em outras palavras, parece que habitamos um Universo raro e incomum dentro do multiverso.

Isso não contradiz o fato de que Universos com mais energia escura suprimiriam a formação de estrelas, reduzindo, portanto, as chances de formação de vida inteligente.

Marbles in boxes.
Marbles in boxes.
Foto: The Conversation

Bolinhas de gude em caixas. CC BY-SA

Por analogia, suponha que queiramos classificar 300 bolinhas de gude em 100 caixas. Cada caixa representa um Universo, e cada bolinha de gude, um observador inteligente. Vamos colocar 100 bolinhas de gude na caixa número um, quatro na caixa número dois e, em seguida, duas bolinhas de gude em todas as outras caixas. Claramente, a primeira caixa contém o maior número de bolinhas de gude. Mas se escolhermos uma bola de gude aleatoriamente de todas as caixas, é mais provável que ela venha de uma caixa diferente da número um.

Da mesma forma, os Universos com pouca energia escura são individualmente mais hospitaleiros para a vida. Mas a vida, embora mais improvável, ainda pode surgir nos muitos Universos possíveis com energia escura abundante também - ainda haverá algumas estrelas neles. Nosso cálculo conclui que a maioria dos observadores em todos os Universos terá uma densidade de energia escura maior do que a medida em nosso Universo.

Além disso, descobrimos que o observador mais típico mediria um valor cerca de 500 vezes maior do que em nosso Universo.

Onde isso nos deixa?

Em conclusão, nossos resultados desafiam o argumento antrópico de que nossa existência explica por que temos um valor tão baixo de energia escura. Poderíamos ter nos encontrado mais facilmente em um Universo com uma densidade de energia escura maior.

O raciocínio antrópico ainda pode ser salvo se adotarmos modelos mais complexos de multiversos. Por exemplo, poderíamos permitir que a quantidade de energia escura e de matéria comum variasse em diferentes Universos. Talvez a redução do surgimento de vida inteligente devido a uma maior densidade de energia escura possa ser compensada por uma maior densidade de matéria comum.

De qualquer forma, nossas descobertas nos alertam contra uma aplicação simplista dos argumentos antrópicos. Isso torna o problema da energia escura ainda mais difícil de ser enfrentado.

O que nós, cosmólogos, devemos fazer agora? Arregaçar as mangas e pensar mais. Só o tempo dirá como resolveremos o quebra-cabeça. Seja como for, tenho certeza de que será incrivelmente empolgante.

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Daniele Sorini recebeu financiamento do European Research Council, pelo grant no. 670193.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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