O Chile deve seu milagre econômico ao governo Pinochet?
Regime militar terminou há cerca de três décadas; é justo, porém, lhe dar crédito pela prosperidade econômica chilena atual? Especialistas divergem.
Quem é o responsável pelo 'milagre econômico' chileno? Há pouco mais de 45 anos, o país sul-americano decidiu seguir o até então inexplorado caminho do neoliberalismo econômico.
Essa opção foi feita pelo governo militar de Augusto Pinochet, em 1973. Quando a ditadura acabou, em 1990, o Chile continuou desfrutando de uma rica prosperidade econômica comparado ao restante da América Latina.
Por isso, não surpreende que até hoje o assunto ainda divida opiniões. Nesta semana, quando o presidente Jair Bolsonaro visita o país, seu ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, elogiou a política econômica implementada no período, ainda que o Chile tenha tido que "dar um banho de sangue" que "lavou" suas ruas. "Mas as bases macroeconômicas fixadas naquele governo...já passaram oito governos de esquerda e nenhum mexeu nas bases macroeconômicas colocadas no Chile no governo Pinochet", afirmou.
O Chile atingiu um crescimento de 4,8% no primeiro semestre de 2018, o maior da América Latina, e o FMI (Fundo Monetário Internacional) estima que, em 2022, o país será o primeiro da região a alcançar um PIB per capita de US$ 30 mil (R$ 111 mil), patamar semelhante ao de nações europeias, como Portugal e Hungria.
Mas, se não há dúvidas sobre a prosperidade econômica do Chile contemporâneo, muitos questionam, quase três décadas depois do fim da ditadura militar, se é justo continuar dando o crédito para isso ao governo Pinochet e à sua versão ortodoxa da economia de mercado.
Chicago Boys
O debate não poderia ser mais atual. O modelo econômico imposto por tecnocratas formados na Universidade de Chicago, conhecidos como "Chicago Boys" logo após o golpe de 1973, ainda é considerado pela direita latino-americana como um exemplo a ser seguido.
Vale a pena lembrar que o ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes, também saiu da Universidade de Chicago.
Nos anos 80, Guedes foi viver no Chile a convite de Jorge Selume Zaror, ex-diretor de Orçamento do regime de Pinochet. Ali, atuou como pesquisador e acadêmico da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, então comandada por Selume Zaror. Atualmente, a equipe de Guedes se apresenta como um grupo de técnicos ortodoxos que prometem colocar ordem no caos econômico reinante no Brasil.
Ainda assim, nem todos acreditam que o sucesso econômico atual do Chile seja herança do pinochetismo.
'Acabou há 30 anos'
Óscar Landerretche, professor da Universidade do Chile e ex-presidente do conselho da estatal de mineração Codelco no governo de centro-esquerda da ex-presidente Michelle Bachelet, é um deles. Segundo ele, faz "pouco sentido" atribuir a atual estabilidade econômica e prosperidade do país ao governo militar de Pinochet.
"A ditadura chilena terminou há quase 30 anos. Enquanto isso, o Chile tem tido um desempenho econômico muito maior do que tinha durante a ditadura em crescimento econômico, estabilidade e até mesmo indicadores de equidade que, embora sejam ruins no âmbito global, são melhores do que antes e estão melhorando, ainda que lentamente", diz Landerretche à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
As políticas implementadas pelo governo militar se mantêm polêmicas até hoje. Se, de um lado, muito se fala sobre como o "milagre econômico" da era Pinochet substituiu a instabilidade social e econômica do governo deposto de Salvador Allende, diversos pesquisadores e analistas ressaltam que o Chile cresceu muito mais durante a redemocratização.
Noah Smith, colunista da agência de notícias Bloomberg, resumiu o debate em um tuíte em novembro do ano passado.
"O crescimento anualizado do PIB real per capita no Chile sob Pinochet (1973-1990) foi de 1,6%. O crescimento anualizado do PIB real per capita no Chile nos 17 anos posteriores a Pinochet (1990-2007) chegou a 4,36%. Pinochet está bastante superdimensionado", escreveu ele.
Tarefa complexa
Há dentro e fora do Chile, no entanto, diversos defensores da plataforma econômica de Pinochet.
"É complexo analisar o desempenho econômico do governo militar chileno", diz à BBC Mundo Steve Hanke, acadêmico da Universidade Johns Hopkins que assessorou diversos governos latino-americanos.
"Nos primeiros anos da era Pinochet houve um boom, quando as medidas iniciais ajudaram a estabilizar o caos da economia socialista", acrescenta.
Quando os militares deram o golpe que resultou na deposição de Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o país sul-americano enfrentava uma forte crise econômica.
O governo socialista havia nacionalizado diversas empresas privadas e permitido a tomada por trabalhadores de fábricas e propriedades rurais, o que aumentou a hostilidade de grande parte do empresariado. Além disso, a inflação afetava os salários da classe média.
Ao tomar o poder, Pinochet entregou o comando da economia a um grupo de economistas formados na Universidade de Chicago. Quase que imediatamente, eles afrouxaram os controles estatais sobre a economia, liberaram exportações, venderam estatais e confiaram na mão do mercado para conduzir o crescimento econômico do país, algo considerado revolucionário naquele momento.
Avanço com altos e baixos
A economia chilena experimentou altos e baixos acentuados durante os anos do governo militar, incluindo uma grande crise em 1982 que levou o governo a recuar em parte das reformas econômicas liberalizantes.
Assim, para analistas como Óscar Landerretche, da Universidade do Chile, falar de um modelo neoliberal chileno "é uma visão caricatural e simplória, própria de quem busca caricaturas úteis para redes sociais".
O acadêmico lembra à BBC News Mundo que "uma parte importante das medidas neoliberais implementadas no início dos anos 1970 foram revertidas nos anos 1980 pelo próprio governo militar. Um exemplo muito claro disso foi sua política de desregulamentação financeira e mudanças no tipo de câmbio. Ambas, que favoreciam o capital financeiro, levaram o Chile a uma crise na década seguinte e acabaram revertidas".
Redemocratização
Após a transição para a democracia em 1990, os governos chilenos seguintes implementaram um processo de desenvolvimento econômico que hoje é invejado no continente.
"O Chile está tão à frente de seus vizinhos que, em muitos aspectos, nem parece fazer parte da América Latina", diz Hanke, da Johns Hopkins.
O país é, por exemplo, o único da América do Sul a ter classificação de risco 'A' entre as principais agências de rating do mundo. Ou seja, tem menos probabilidade de dar calote do que seus vizinhos.
Para Hanke, é "evidente" que a atual prosperidade chilena se baseia em medidas adotadas durante a era Pinochet. Ele cita como exemplo a continuidade do sistema de seguridade social baseado em fundos de previdência privada, um dos programas emblemáticos do governo militar.
E menciona também a lei de mineração implementada pelo mesmo governo, que descreve como "a melhor do mundo", que "não mudou uma única palavra" desde a época de Pinochet.
Landerretche, da Universidade do Chile, discorda de Hanke.
"Os governos democráticos têm aumentado constantemente o papel do Estado, particularmente nas áreas de infraestrutura, políticas sociais, proteção ao consumidor, saúde e educação. Ao fim da ditadura no Chile, não havia seguro de saúde universal, seguro-desemprego, gratuidade no ensino superior, nem pilares solidários no sistema de pensões."
Segundo ele, "todas essas coisas foram implementadas nos últimos 30 anos, o que gerou um crescimento importante do tamanho do Estado e que levou o Chile a alcançar algum avanço em igualdade social em uma época na qual a desigualdade cresce pelo mundo".
A prosperidade chilena causa, há muito tempo, um desconforto interno por causa da ligação, em maior ou menor grau, com o regime militar. Mesmo após três décadas do fim do governo de Pinochet, a polêmica parece não ter data para acabar.
Suspeitas de corrupção
Outra polêmica que rondou a imagem de Pinochet após o fim de seu governo foi a revelação de contas mantidas secretamente em bancos no exterior. Enquanto investigava casos de lavagem de dinheiro, uma subcomissão do Senado dos EUA acabou encontrando os valores mantidos pelo ex-general e sua família no Riggs Bank, organização com sede em Washington e filiais em Londres.
Pinochet e sua família mantinham, segundo o Senado americano, cerca de US$ 8 milhões em contas na instituição - os valores teriam sido depositados entre 1994 e 2002. Somado ao de outras contas em outros bancos estrangeiros, o valor subia para quase US$ 15 milhões.
A investigação revelou, em 2004, que Pinochet conseguira transferir, enquanto estava detido na Espanha, cerca de US$ 1,6 milhão do total para uma conta nos EUA.
No ano passado, a Suprema Corte chilena ordenou à família do ex-general que devolvesse aos cofres públicos parte dos valores - cerca de US$ 5,1 milhões, de acordo com a sentença.
Reportagem publicada originalmente em 12 de janeiro de 2019 e atualizada em 22 de março de 2019.
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