O declínio do multilateralismo e a ascensão dos interesses nacionais
Durante décadas, o multilateralismo foi o alicerce da cooperação internacional. Esse modelo está em declínio, à medida que os interesses nacionais passam a guiar cada vez mais as decisões que deveriam ser coletivas, marcando uma mudança significativa de paradigma.
O início de 2025 marca uma encruzilhada nas relações internacionais. As decisões políticas das grandes potências, capitaneadas pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca e pelo avanço de lideranças autoritárias em diversas regiōes, estão redefinindo os valores do multilateralismo e promovendo uma visão mais transacional do poder.
Durante décadas, o multilateralismo foi o alicerce da cooperação internacional, promovendo "soluções conjuntas" para desafios globais, ainda que a voz dos países em desenvolvimento tenha sido historicamente mais fraca em comparação à dos países desenvolvidos. Contudo, esse modelo está em declínio, à medida que os interesses nacionais passam a guiar cada vez mais as decisões que deveriam ser coletivas, marcando uma mudança significativa de paradigma.
BRICS propõe agenda que reflita maior equidade global
O enfraquecimento da atual ordem multilateral reflete-se em alianças como o BRICS+, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual se juntaram Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia em janeiro de 2024, e Indonésia em janeiro de 2025. Essa coalizão busca fortalecer a posição do Sul Global e reivindicar uma reforma na ordem internacional.
O grupo questiona um sistema de regras que privilegia os interesses das grandes potências, ignorando as necessidades e demandas dos países em desenvolvimento. Nesse sentido, desempenha um papel central na articulação de uma agenda que reflita o desejo de maior equidade global. Ainda assim, não substitui coalizões mais amplas, como o Grupo dos 77 (G77), criado em 1964 para promover os interesses coletivos dos países em desenvolvimento no âmbito das Nações Unidas.
A transição para políticas centradas em interesses nacionais é particularmente evidente nas oscilações dos Estados Unidos em tratados fundamentais. O país retirou-se formalmente do Acordo de Paris durante o primeiro governo Trump (2016-2020), retornando apenas em 2021 sob Joe Biden. Da mesma forma, Trump anunciou a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, sob alegações de má gestão da pandemia e influência da China, decisão revertida também em 2021. Não obstante, em seu primeiro dia de mandato (20 de janeiro de 2025), Trump assinou diversas ordens executivas, incluindo, novamente, a retirada do país de ambos os tratados.
Tensões comerciais entre Estados Unidos e China, assim como entre União Europeia e China, também ilustram a transição para políticas protecionistas, que priorizam vantagens econômicas imediatas em detrimento da cooperação global. Essa abordagem, embora possa atender a objetivos nacionais de curto prazo, dificulta a capacidade de responder de forma conjunta a desafios sistêmicos, como mudanças climáticas, migrações em massa e crises sanitárias.
O enfraquecimento do multilateralismo tradicional apresenta, portanto, desafios nada desprezíveis para a gestão coletiva de problemas globais. À medida que o equilíbrio entre interesses nacionais e a colaboração internacional se torna cada vez mais difícil, o futuro da governança global dependerá de uma reconciliação entre essas duas forças opostas, capaz de garantir soluções sustentáveis e inclusivas.
Trump reforça bilateralismo agressivo, com evidente desproporção de forças
A postura pragmática e empresarial de Trump reforça essa tendência nacionalista ao adotar um bilateralismo agressivo, baseado em negociações caso a caso (país a país, com evidente desproporção de forças), em vez de priorizar a construção de consensos internacionais. Embora essa abordagem seja prática e direta, ela acarreta graves consequências para a estabilidade global, ao dificultar ações coordenadas frente a problemas coletivos.
Embora imperfeito, o multilateralismo proporciona previsibilidade e estabilidade. Sua substituição por interesses puramente nacionais compromete a relevância das soluções para problemas globais, resultando em decisões potencialmente erráticas e conflitantes.
As emissões de gases de efeito estufa continuam a aumentar, enquanto a polarização política que se observa em todos os lados dificulta a implementação de soluções eficazes. O distanciamento dos Estados Unidos de tratados ambientais fundamentais, como a Convenção de Basileia (que regula o transporte transfronteiriço de resíduos perigosos) e a Convenção de Estocolmo (que visa eliminar poluentes orgânicos persistentes), ambos assinados, mas não ratificados pelo país, enfraquece a confiança nos compromissos internacionais. Como uma das maiores economias e principais emissores de poluentes do planeta, a liderança norte-americana é essencial para impulsionar uma governança ambiental eficaz, capaz de enfrentar os desafios climáticos de maneira coletiva e integrada.
Aumento do protecionismo exacerba as desigualdades
Por outro lado,o aumento do protecionismo, liderado pelas grandes economias, inaugurou uma nova era de "guerras comerciais" que afeta particularmente os países do Sul Global. Esse protecionismo, manifestado em tarifas sobre produtos essenciais como alimentos e tecnologia, exacerba as desigualdades econômicas (assimetrias) e ameaça a estabilidade de regiões vulneráveis.
De fato, a tecnologia tornou-se um campo de competição estratégica. A corrida pelo domínio da inteligência artificial (IA) e dos semicondutores está redefinindo as dinâmicas geopolíticas. A influência de tecnomagnatas como Elon Musk também levanta questionamentos sobre o equilíbrio entre poder público e privado, e sobre a capacidade dos Estados de regular essas influências.
As economias emergentes enfrentam os impactos combinados da crise climática, das guerras comerciais e da redução da ajuda internacional. Isso agrava as desigualdades existentes, deixando muitas nações em uma posição de vulnerabilidade extrema. A transição para energias renováveis e o fortalecimento da resiliência climática são prioridades urgentes para essas regiões.
A chave é fortalecer o multilateralismo
A crescente polarização ideológica e o aumento de discursos de ódio estão afetando a coesão social em numerosos países. As redes sociais, embora tenham transformado a participação nos debates públicos, também estão facilitando a propagação de desinformação e teorias da conspiração, minando a confiança nas instituições democráticas.
A nova ordem mundial é uma realidade em construção, marcada por tensões, desigualdades e desafios enormes. A transição para um sistema mais transacional reflete uma luta pelo poder que coloca em risco os valores democráticos e a capacidade de cooperação internacional. Neste cenário, é crucial refletir sobre estratégias para superar a fragmentação e avançar rumo a um futuro mais inclusivo e sustentável.
A chave está em fortalecer o multilateralismo, fomentar a governança tecnológica e garantir que as vozes das comunidades mais afetadas, especialmente no Sul Global, sejam ouvidas e consideradas nos processos globais de tomada de decisão.
Armando Alvares Garcia Júnior não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.