O que Charles Darwin viu no Brasil
Foi na Bahia e no Rio que o naturalista se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical e também se chocou com a escravidão: pontos tidos como cruciais para a elaboração de sua revolucionária teoria.
A passagem Charles Darwin (1809-1882) pelo Brasil pode ter sido muito mais importante para a Teoria da Evolução das Espécies do que se costuma imaginar. Muito se fala sobre as observações feitas pelo naturalista britânico nas Ilhas Galápagos e na Patagônia argentina. Mas foi em solo brasileiro, há 185 anos, que ele se deparou pela primeira vez com a diversidade da floresta tropical e também se chocou com a escravidão - reforçando suas convicções abolicionistas de que todos os seres humanos compartilham a mesma linhagem sanguínea em razão da ancestralidade comum.
Os dois pontos, segundo especialistas, foram cruciais para a elaboração da revolucionária teoria que separou, pela primeira vez, a ciência da religião, lançada, em 1859, no livro A origem das espécies. Segundo a Teoria da Evolução, todas as espécies evoluem a partir de mutações aleatórias e da seleção natural dos mais bem adaptados. E o homem é ligado a todos os outros animais por descender de um ancestral comum ao dos macacos e, por isso, não poderia haver diferenciação entre raças.
O HMS Beagle, comandado pelo capitão Fitz-Roy, partiu de Davenport, na Inglaterra, em 27 de dezembro de 1831, para uma viagem ao redor do mundo que duraria cerca de cinco anos. A bordo estava o jovem naturalista Charles Darwin, de apenas 22 anos. Depois de passar por Cabo Verde, o navio seguiu para o arquipélago brasileiro de São Pedro e São Paulo e para Fernando de Noronha, antes de parar na Bahia. No livro Viagens de um naturalista ao redor do mundo, Darwin dedica cerca de dez páginas a sua passagem por Salvador, aonde chegou em 29 de fevereiro de 1832.
Embora a estadia na capital baiana tenha sido curta, Darwin passeou pela cidade e chegou mesmo a explorar um pouco do interior, coletando amostras de plantas, insetos e até um lagarto. Num dos trechos de seu diário, ele nota que coletou uma grande quantidade de flores tão brilhantes e coloridas, que seriam capazes de fazer um "florista enlouquecer". Ainda na cidade, Darwin enfrentou pelo menos duas experiências que considerou assustadoras: uma forte tempestade tropical e o carnaval de rua de Salvador - em que foi acertado pelas bolas de cera recheadas de água, o chamado limão de cheiro, usado na época nos festejos.
Em suas anotações ele ressalta que todo o trabalho braçal era feito por negros, registra relatos de escravos e se refere aos ingleses preconceituosos como "selvagens polidos".
"De onde vem a diversidade?"
Em 4 de abril, o navio chegou ao Rio de Janeiro, onde o naturalista ficaria por mais de quatro meses. Um capítulo inteiro de seu livro é dedicado a este período em que fez uma longa incursão pelo interior do estado, coletando dados geológicos, amostras de plantas e animais e, como sempre, histórias do horror da escravidão.
"O impacto da passagem de Darwin pelo Brasil não foi pequeno e motivou a pergunta 'de onde vem a diversidade?'", afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu Moreira, que está terminando de organizar um livro reunindo todos os escritos de Darwin sobre o Brasil, entre relatos de viagens e cartas. "Em vários trechos ele diz que uma das coisas que mais o impressionaram foi a diversidade da natureza tropical que viu em Salvador e no Rio."
Charles Darwin vinha de uma família liberal e antiescravagista, mas nunca tinha visto a escravidão de perto. A ideia de que a postura antiescravagista de Darwin estaria na origem da Teoria da Evolução é defendida por dois grandes especialistas na obra de Darwin e biógrafos do naturalista, Adrian Desmond e James Moore, no livro A causa sagrada de Darwin.
"Vivenciar a escravidão desta forma e constatar a diferenciação absurda feita entre seres humanos certamente o impactou bastante", sustenta Moreira. "Ele cita muitas vezes exemplos claros de crueldade contra escravos e dá para notar claramente a irritação dele ao discutir a escravidão com Fritz-Roy."
Poucos dias depois da chegada de Darwin ao Rio, o naturalista escreve que conheceu um inglês que se preparava para visitar suas propriedades, "situadas a pouco mais de 100 milhas (160 km) da capital", ao norte de Cabo Frio. "Ele teve a gentileza de me convidar como companhia, o que aceitei com prazer". A expedição começou no dia 8 de abril. Darwin conta que, em meio a um calor intenso, o silêncio da mata era completo, "quebrado apenas pelo voo preguiçoso das borboletas".
Já neste primeiro dia, o grupo passou por uma fazenda na Lagoa de Maricá. Lá ele ouviu uma história que reproduz em seus escritos. Um grupo de capatazes teria sido enviado em busca dos escravos fugitivos e todos eles acabaram se rendendo, encurralados junto a um precipício, à exceção de uma mulher, já de uma certa idade, que preferiu se lançar para a morte. "Praticado por uma matrona romana, esse ato seria interpretado e difundido como amor à liberdade", escreveu Darwin. "Mas da parte de uma pobre negra, se limitaram a dizer que não passou de um gesto bruto."
"Jamais voltaria"
Outra história chamou muito a atenção de Darwin, desta vez numa fazenda em Conceição do Macabu, no interior do estado.
"Ele fica particularmente chocado ao ver um capataz ameaçar separar uma família como forma de punição", conta Kátia Leite Mansur, do Departamento de Geologia da UFRJ, uma das idealizadoras do projeto Caminhos de Darwin, que mapeou toda a região por onde o naturalista passou em sua expedição. "Ele escreve que além do uso da força, é um dos castigos mais cruéis. E diz que jamais voltaria a um país em que houvesse escravidão."
Em 2009, por conta dos 200 anos do nascimento do naturalista, 12 placas foram instaladas ao longo do percurso com informações sobre a sua passagem. Ainda em 2017, Kátia espera inaugurar seis grandes painéis com informações geológicas. Há ainda o projeto de se construir um espaço Darwin na Fazenda Campos Novos, entre Cabo Frio e Búzios, um dos pontos de pouso do naturalista. A fazenda, do século 18, é tombada pelo patrimônio, mas precisa de reformas. Trata-se da mais antiga fazenda jesuíta que resta em pé no país.
"Darwin ficou muito tempo no Rio, onde fez observações sociais, levantou questões relativas à escravidão, e ainda coletou muita coisa, descreveu muitas plantas, bichos e rochas", resume Katia. "O tempo que passou no interior viu coisas que nunca tinha visto, restingas, borboletas. Também descreve os lugares por onde passa, as hospedarias, igrejas, as comidas, as pessoas. E é um relato muito poético, muito bonito."
A viagem do Beagle estava prevista para durar apenas dois anos, mas acabou se prolongando por quase cinco, com uma volta ao mundo, que incluiu as passagens mais conhecidas da expedição do naturalista pelas Ilhas Galápagos e a Patagônia. Quando finalmente voltou à Inglaterra, Darwin já era famoso por conta das amostras que mandava regularmente a seu país.
Ao que tudo indica, não foi apenas a visão dos tentilhões e dos fósseis de mamíferos gigantes que forjaram a mais revolucionária das teorias científicas, mas também a exuberância da floresta tropical brasileira e os horrores da escravidão.