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Os sul-coreanos obrigados a trabalhar como escravos em minas de carvão da Coreia do Norte

Relatório descreve como os prisioneiros de guerra são usados ​​como mão de obra escrava para financiar o programa armamentista do regime norte-coreano.

5 abr 2021 - 07h26
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A ex-prisioneira Kim Hye-sook desenhou estas ilustrações retratando sua experiência em uma mina de carvão da Coreia do Norte
A ex-prisioneira Kim Hye-sook desenhou estas ilustrações retratando sua experiência em uma mina de carvão da Coreia do Norte
Foto: Kim Hye-sook / BBC News Brasil

Gerações de prisioneiros de guerra sul-coreanos estão sendo forçados a trabalhar como escravos em minas de carvão norte-coreanas para gerar dinheiro para o regime e seu programa armamentista, de acordo com um relatório divulgado por uma organização de direitos humanos. A BBC investigou mais de perto as denúncias.

"Quando vejo escravos algemados e sendo arrastados na TV, vejo a mim mesmo", diz Choi Ki-sun.

Ele foi um dos cerca de 50 mil prisioneiros capturados pela Coreia do Norte no fim da Guerra da Coreia em 1953.

"Quando fomos levados para os campos de trabalho forçado, estávamos sob a mira de armas, enfileirados com guardas armados em volta. O que mais isso poderia ser senão trabalho escravo?"

Choi (nome fictício) conta que continuou a trabalhar em uma mina na província de Hamgyeong do Norte ao lado de cerca de 670 outros prisioneiros de guerra até conseguir fugir, 40 anos depois.

Não é fácil extrair histórias das minas. Aqueles que sobrevivem, como Choi, relatam casos de explosões fatais e execuções em massa. E revelam que viviam à base de parcas refeições, enquanto eram encorajados a casar e ter filhos, que mais tarde não teriam escolha a não ser acompanhá-los nas minas — como aconteceu com Choi.

"Gerações de pessoas nascem, vivem e morrem nas zonas de mineração e vivenciam o pior tipo de perseguição e discriminação por toda sua vida", explica Joanna Hosaniak, uma das autoras do relatório Blood Coal Export from North Korea (Exportação de Carvão de Sangue da Coreia do Norte, em tradução livre), da ONG Citizens' Alliance for North Korea Human Rights (NKHR).

O relatório descreve o funcionamento interno das minas de carvão do Estado e alega que gangues de criminosos, incluindo a máfia japonesa Yakuza, ajudaram Pyongyang a contrabandear mercadorias para fora do país, gerando quantias incalculáveis de dinheiro — centenas de milhões de dólares, de acordo com as estimativas —, montante que acredita-se ter sido usado para financiar o programa armamentista secreto do país.

O relatório é baseado nos depoimentos de 15 pessoas que conhecem pessoalmente as minas de carvão da Coreia do Norte.

A BBC entrevistou um dos colaboradores do relatório e ouviu de forma independente outras quatros pessoas que afirmam ter sofrido e escapado das minas de carvão da Coreia do Norte. Todos, com exceção de um, pediram para proteger sua identidade no intuito de manter a salvo suas famílias que permanecem no país.

Colhendo ervas da montanha para se alimentar
Colhendo ervas da montanha para se alimentar
Foto: Kim Hye-sook / BBC News Brasil

A Coreia do Norte nega sistematicamente as denúncias de abusos de direitos humanos e se recusa a comentá-las. Insiste ainda que todos os prisioneiros de guerra foram devolvidos de acordo com os termos do armistício — e um membro do governo afirmou uma vez que aqueles que ficaram desejaram "permanecer no seio da República".

Mas Choi diz que isso não é verdade. Ele contou que morava dentro de um acampamento cercado e vigiado por soldados armados.

A princípio, disseram a ele que, se trabalhasse bastante, teria permissão para voltar para casa. Mas, com o tempo, a esperança de retornar à Coreia do Sul acabou desvanecendo.

Trabalho infantil

O atual sistema de trabalho forçado nas minas de carvão da Coreia do Norte parece ter sido estabelecido após a Guerra da Coreia. O relatório da NKHR o descreveu como "escravidão herdada".

Os sul-coreanos foram levados para as principais minas de carvão, magnesita, zinco e chumbo, sobretudo nas províncias de Hamgyeong do Norte e do Sul, de acordo com a investigação do grupo de direitos humanos.

Mas nem todo mundo que acaba nas minas é prisioneiro de guerra. Kim Hye-sook foi informada pelos guardas que seu avô foi para o sul durante a guerra — e, por isso, ela foi enviada para trabalhar na mina de carvão com sua família quando era adolescente.

Seu destino foi determinado por seu songbun — ou classe, um julgamento feito com base em quão leal uma família é ao regime e quantos são membros do Partido dos Trabalhadores.

Conexões com a Coreia do Sul automaticamente colocam a pessoa na classe mais baixa.

'Vida de escravos, não de seres humanos'
'Vida de escravos, não de seres humanos'
Foto: Kim Hye-sook / BBC News Brasil

Kim tinha apenas 16 anos quando começou a trabalhar na mina. O relatório da NKHR contém relatos de sobreviventes que disseram ter começado a trabalhar meio período na mina aos 7 anos de idade.

"Quando fui designada pela primeira vez, havia 23 pessoas na minha unidade", ela recorda. "Mas as minas desabavam, e os fios que puxavam o carrinho da mina se rompiam e matavam as pessoas atrás deles."

"As pessoas morriam em explosões enquanto cavavam as minas. Há diferentes camadas, nas minas, mas às vezes uma camada de água estourava, e as pessoas podiam se afogar. Então, no final, apenas 6 dos 23 que haviam inicialmente permaneciam vivos."

'A morte é um bom final'

Mas o seu songbun não apenas determina seu destino nas minas — ele também pode determinar se você vai viver ou morrer, de acordo com um ex-membro do Ministério da Segurança do Estado, citado na investigação da NKHR.

"Você tenta deixar as pessoas da classe leal viverem. E tenta matar as pessoas da classe baixa."

Mas, segundo ele, todas as execuções — sobretudo de "espiões sul-coreanos" — foram feitas de acordo com as "leis norte-coreanas".

"Você precisa de análise de dados para mostrar que é muito justificável matar essa pessoa. Mesmo que tenham cometido o mesmo crime, se a sua classe for boa, eles deixam você viver. Não te mandam para o campo de prisioneiros políticos. Você vai para uma prisão comum ou para um campo de trabalho com função corretiva."

"Você não os mata, porque a morte é um bom final. Você não pode morrer, você tem que trabalhar sob ordens até morrer."

O entrevistado descreveu uma "galeria de tiro" nos fundos da sala de interrogatório do ministério, onde alguns prisioneiros foram mortos. De acordo com ele, alguns foram executados publicamente, enquanto outros foram assassinados de maneira discreta.

A BBC não foi capaz de confirmar de forma independente este relato. Mas ouvimos Lee, que se lembra do momento em que seu pai e irmão foram executados.

"Eles os amarraram a estacas, chamando-os de traidores da nação, espiões e reacionários", disse ela aos meus colegas da BBC Korean, serviço coreano da BBC, em uma entrevista.

Seu pai era um ex-prisioneiro de guerra sul-coreano, e isso significava que ela também foi forçada a trabalhar nas minas.

O pai de Lee havia elogiado sua cidade natal na Coreia do Sul, Pohang, e seu irmão havia repetido a afirmação aos colegas de trabalho. Segundo ela, foi por isso que três algozes mataram os dois a tiros.

'Estávamos sempre com fome'

As autoridades norte-coreanas parecem ter permitido acesso aos prisioneiros de guerra a alguns aspectos da vida normal nos campos de mineração. Eles concederam cidadania aos mineiros em 1956. Para a maioria, esse foi o momento em que souberam que não voltariam para casa.

Todos os nossos entrevistados foram autorizados e até incentivados a se casar e ter filhos. Mas Kim acredita que isso também tinha um propósito.

"Eles diziam para a gente ter muitos filhos. Eles precisavam manter as minas, mas morriam pessoas todos os dias. Há acidentes todos os dias. Então, eles nos diziam para ter muitos filhos. Mas não há comida suficiente, tampouco fraldas etc — então, mesmo que você dê à luz uma criança, é difícil criá-la com sucesso."

Kim foi libertada do campo de prisioneiros em 2001 como parte de uma anistia nacional e, por fim, escapou da Coreia do Norte cruzando um rio perto da fronteira com a China.

Ela decidiu fazer ilustrações de seus 28 anos na mina, e afirma que isso ajudou a lidar com alguns de seus pesadelos e mostrar aos outros o que ela havia passado.

A fome era um problema constante para todos os nossos entrevistados e está documentada no relatório da NKHR.

"Não havia um dia sem passar fome. Estávamos sempre com fome. Uma refeição por dia, não sabíamos que outras pessoas comiam três vezes ao dia. Nos davam arroz, que continua a inchar embebido em água", contou Kim à BBC.

Um ex-prisioneiro de guerra nos disse que, mesmo que estivessem doentes, precisavam trabalhar.

"Se você perdesse um dia de trabalho, seu vale-refeição podia ser retirado", ele afirmou.

Segundo ele, os mineiros recebiam cotas para cumprir, estimadas em cerca de três toneladas de antracite (uma variedade de carvão duro) por dia pelo relatório da NKHR. O não cumprimento poderia significar nenhum vale-refeição, o que significava passar fome.

'Escravidão' como financiamento para armas

O Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) proibiu as exportações de carvão da Coreia do Norte em uma tentativa de impedir o financiamento de seus programas nucleares e de mísseis balísticos.

Mas, dois anos depois, um relatório independente de monitoramento das sanções afirmou que o país ganhou centenas de milhões de dólares "por meio de exportações marítimas ilícitas de commodities, principalmente carvão e areia".

Em dezembro, os Estados Unidos disseram que a Coreia do Norte continuou "a burlar a proibição da ONU à exportação de carvão, uma fonte de receita importante que ajuda a financiar seus programas de armas de destruição em massa".

O relatório da NKHR também afirma que as minas continuam a expandir.

Joanna Hosaniak, vice-diretora da ONG, pediu à ONU que investigue a fundo a dependência da Coreia do Norte da escravidão e do trabalho forçado, incluindo "toda a extensão da extração e exportação ilegal de carvão e outros produtos, e a cadeia de suprimentos internacional ligada a essas exportações".

"Isso também deve ser reforçado por meio de um sistema de alerta claro para as empresas e consumidores."

'Minha juventude perdida com este carrinho de mina na prisão'
'Minha juventude perdida com este carrinho de mina na prisão'
Foto: Kim Hye-sook / BBC News Brasil

No Sul, o governo tem se concentrado no relacionamento com Pyongyang e tem discutido até a possibilidade de uma economia baseada na paz com o Norte.

A Coreia do Sul argumenta que uma abordagem mais agressiva em relação aos direitos humanos faria com que a Coreia do Norte se afastasse da mesa de negociações e também poderia levar a um aumento nas hostilidades.

Mas um relatório do Escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos em Seul afirmou que é hora de "integrar os direitos humanos nas negociações de paz e desnuclearização", que também devem envolver a contribuição de desertores norte-coreanos.

Muitos ainda sofrem

No entanto, para dois ex-prisioneiros de guerra forçados a trabalhar nas minas, resta alguma esperança. Eles obtiveram uma vitória histórica na Justiça depois que o Tribunal Distrital Central de Seul ordenou que a Coreia do Norte e seu líder, Kim Jong-un, pagassem a eles US$ 17,6 mil (R$ 100,5 mil) de indenização por detê-los contra sua vontade e forçá-los a trabalhar nas minas.

Esta foi a primeira vez que um tribunal do Sul reconheceu o sofrimento dos prisioneiros de guerra mantidos no Norte.

Choi foi um deles. "Não tenho certeza se verei o dinheiro antes de morrer, mas a vitória é mais importante do que o dinheiro", ele me disse em seu apartamento ao sul de Seul.

Mas seu pensamento sempre volta para aqueles que ficaram trabalhando nas minas, enquanto ele me serve um prato de frutas que outrora seria um luxo impensável. Ele me conta que está tentando mandar algum dinheiro para sua família no Norte.

"Penso em quanto eles devem estar sofrendo enquanto estou feliz agora", suspira.

Ilustrações de Kim Hye-sook.

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