Perdido na tradução: o que a espiritualidade e a teoria de Einstein têm a ver com os mal-entendidos sobre as mudanças climáticas
Em uma ilha africana, onde um dos idiomas locais não tem palavras consagradas para mudança climática, um pesquisador descobre lições para todos ao discutir a mudança climática
Quando era criança, no início da década de 1990, lembro-me de ter aprendido na escola sobre o efeito estufa. O dióxido de carbono liberado pela queima de combustíveis fósseis retém o calor próximo à superfície da Terra, como o vidro de uma estufa. Eu me imaginava no playground, assando dentro de um forno úmido.
Passados 30 anos, os termos mudaram.
Por um tempo, "aquecimento global" foi a expressão mais usada para falar sobre o aumento das temperaturas no mundo e o papel das atividades humanas, principalmente o uso de combustíveis fósseis. O termo teve um pico nas buscas na internet em 2007, provavelmente devido ao documentário do ex-vice-presidente americano Al Gore (1993 a 2001) "Uma verdade inconveniente: Um alerta global", que chegou aos cinemas em 2006.
Perto do final do governo Obama (Barack, presidente dos Estados Unidos de 2009 a 2017), "mudança climática" tornou-se o termo mais comum. Atualmente, está mais presente nas pesquisas do Google do que 'aquecimento global'. Ambos têm o mesmo significado: o aumento das temperaturas e suas consequências importantes nos padrões climáticos locais e nos efeitos mundiais, incluindo fortes furacões, secas, enchentes e incêndios.
Entretanto, as palavras que usamos para discutir esses efeitos podem fazer uma grande diferença na forma como as pessoas entendem os riscos e a necessidade de escolhas mais sustentáveis.
O que há em um nome? Muito, ao que parece
Sou uma pesquisadora de linguística que vive, atualmente, na Ilha de Mayotte, na costa de Madagascar, onde estudo o conhecimento sobre alterações do clima entre as populações locais e a linguagem que elas usam para discutir o assunto.
Os pescadores locais de Mayotte têm dificuldade para falar sobre o fenômeno porque não há uma terminologia estabelecida. O que meus colegas e eu aprendemos oferece uma visão das barreiras que as pessoas em muitas e diversificadas culturas têm para entender o que está acontecendo no clima.
No grande esquema da educação sobre as alterações do tempo e dos esforços de sustentabilidade, esse problema, aparentemente menor de tradução, é, na verdade, sintomático de uma questão subjacente mais ampla sobre a relação entre os seres humanos e seu ambiente.
De fato, quando nos aprofundamos nos desafios da comunicação sobre esses assuntos entre culturas diferentes, dois fatores entram em jogo: crenças espirituais e noções de tempo.
A linguagem espiritual pode se sobrepor
As crenças espirituais e religiosas podem desempenhar um papel importante na forma como as mudanças climáticas são compreendidas e até mesmo nomeadas. Por exemplo, a tradução da palavra 'clima' em Inuktitut, uma língua Inuit falada no Canadá, é "sila". Entretanto, sila também se refere à sabedoria, ao espírito, à terra e ao universo. É algo sagrado que deve ser reverenciado.
Visto pelas lentes desse segundo conjunto de definições, o sila é efetivamente algo impossível de ser influenciado pelas pessoas. Está além do alcance da humanidade mudar o cosmos. Como resultado, a comunicação destinada a promover a conscientização sobre as mudanças climáticas torna-se politizada nos idiomas inuítes do leste canadense.
Meus colegas e eu encontramos desafios semelhantes ao discutir possíveis esforços futuros para desacelerar a destruição ambiental causada pelas intempéries do clima em Mayotte.
Os pescadores Maore que entrevistamos, muitos dos quais tinham uma profunda fé islâmica, frequentemente respondiam com "Inshallah", ou "se Deus quiser", quando questionados sobre os esforços que a comunidade poderia fazer, no futuro, para resolver os desafios. Eles viam os fenômenos relacionados a algo fora de seu alcance e somente Deus poderia interferir.
As pessoas entendem o tempo de maneiras diferentes
Em segundo lugar, podemos pensar que o tempo é objetivo e, portanto, compartilhado entre as culturas. Mas, como Albert Einstein argumentou, o tempo é relativo.
O tempo não é relativo apenas do ponto de vista científico, mas também do ponto de vista cultural. Por exemplo, os gregos antigos tinham mais de três tipos de tempo, um dos quais ainda usamos hoje, Kronos, ou tempo linear - em ordem cronológica. Quase nos esquecemos de Aion, ou tempo sagrado e eterno, e Kairos, ou tempo cíclico.
As noções de tempo desempenham um papel importante quando pensamos em adversidades climáticas, pois o cerne do fenômeno envolve uma mudança lenta e contínua durante um longo período. Não podemos vê-la acontecer a olho nu, pois ela ocorre no decorrer de anos ou décadas. É claro que podemos ver seus efeitos nos padrões climáticos, incluindo ondas de calor extremas e chuvas torrenciais.
Fazer com que as pessoas pensem sobre o tempo de uma forma que conecte, simultaneamente, no agora e no "depois", em um futuro distante, é um desafio em muitas culturas.
Por exemplo, os pesquisadores que estudam os esforços de sustentabilidade nas Ilhas Maldivas se depararam com esse mesmo problema. Ao discutir o tempo, muitos residentes locais pensam em termos do agora e do futuro próximo enquanto os formuladores de políticas devem pensar nos efeitos de longo prazo, em uma escala maior. Essas abordagens contrastantes dificultaram a implementação de esforços de sustentabilidade para combater o aumento do nível do mar - uma ameaça significativa para essa nação tropical de 26 atóis.
Traduzindo as mudanças climáticas
Um primeiro passo para enfrentar esse problema é colocar o idioma na vanguarda dos esforços de educação sobre mudanças climáticas.
Uma organização sem fins lucrativos voltada para jovens e que está fazendo progressos nessa área é a Climate Cardinals. O objetivo é traduzir as pesquisas relacionadas ao tema para o maior número possível de idiomas. A maioria dos estudos e relatórios científicos está escrito (ou falado) em inglês, o que pode ser uma barreira para os muitos que não compreendem essa língua em todo o mundo. Em seus esforços para traduzir a pesquisa e os fenômenos relacionados, eles precisam pensar cuidadosamente sobre como as palavras importantes são traduzidas e compreendidas.
As Nações Unidas e outros grupos também estão começando a levar a sério a conexão entre o ceticismo e a religião, incluindo a necessidade de conciliar eventuais pontos de atrito.
Por exemplo, a Faith for Earth Initiative (Iniciativa Fé pela Terra) trabalha com organizações religiosas para abordar a compatibilidade entre os esforços de sustentabilidade e a fé. Ela faz isso ajudando os líderes religiosos a conectar valores espirituais fundamentais, como o cuidado e a rejeição da ganância, ao meio ambiente, reunindo-se com a natureza e vendo-se como seus administradores.
Por fim, é imperativo continuar estudando o conhecimento local ou indígena sobre o meio ambiente em relação à mudança e ao tempo. Os gregos antigos certamente tinham seus motivos para dividir o tempo em várias categorias. Então, quais foram as influências ambientais e históricas que os levaram a fazer isso?
Por exemplo, pesquisadores e membros da comunidade, na Austrália, estão procurando conciliar o conhecimento indígena com a ciência ocidental. Graças às observações de longa data dos habitantes locais sobre seu ambiente ao longo de várias gerações, eles conseguiram identificar os efeitos das mudanças climáticas. Essas informações, geralmente, são negligenciadas e difíceis de serem obtidas pelos métodos tradicionais de pesquisa.
Além das manchetes
A conscientização sobre as mudanças climáticas e os esforços de sustentabilidade só aumentarão. É preciso ter cuidado com a forma como esses conceitos são vividos, compreendidos e discutidos em ambientes não ocidentais. A linguagem é parte integrante desses esforços e merece ser considerada com mais cuidado.
Miki Mori recebeu financiamento da Mission for Transversal and Interdisciplinary Initiatives do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França para o projeto em Mayotte.