A dona Claudete não sabe dizer ao certo quando o seu Agenor
começou com aquele papo de que precisava de um aparelho
ortodôntico para desacavalar o incisivo esquerdo. Só se recorda que um certo dia ele apareceu em casa, feliz da vida, com um aparelho fincado na boca.Uma tarde tocou o telefone e era a Naná, uma vizinha e amiga, aflita, dizendo que tinha acontecido uma tragédia. O seu Agenor estava no cinema do shopping, ali em frente; era uma coisa horrível, ela nem tinha coragem de contar!
A dona Claudete foi logo imaginando o pior. Que o pobre do
Agenor tivera um ataque cardíaco em plena sessão e havia
morrido.
Atravessou a rua, entrou no cinema e sentiu que, realmente, coisa boa não era. Olhou para a última fileira, bem atrás, e lá estava a materialização da tragédia: um corpo, que devia ser o do seu Agenor, coberto por um lençol.
"Agê!!!", foi só o que ela conseguir dizer, imaginando o marido morto.
Levantou o lençol e o que viu não foi nada disso. O que viu,
realidade nua e crua, foi o seu Agenor, a saliva escorrendo pelo queixo até o pescoço, enganchado, dente com dente, ele e a Dedeca, uma outra moradora do prédio, que também usava
aparelho para desacavalar um incisivo.
A dona Claudete só retomou a razão quando um magrela, camisa
listrada e gorro na cabeça, gritou lá de longe:
"Esses daí só com abridor de lata ou pé-de-cabra!"
O seu Agenor, um otimista por natureza, enviesou o canto dos
olhos na direção da mulher e fez um gesto, primeiro com a mão espalmada, depois com o indicador, em elipses, como quem diz:
"Calma, Claudete. Depois eu explico."
A dona Claudete saiu dali e fez aquilo que sonhara fazer a vida inteira e nunca tivera coragem. Entrou num bar, tomou seis chopes e voltou pra casa trocando as pernas. E dali em diante o seu Agenor, se quisesse, que requentasse o seu próprio jantar.
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