O seu Bernardino era um sujeito pacato, não se incomodava com nada, para ele estava tudo sempre muito bem e ponto final. O seu Bernardino era um sujeito tão pacato que a dona Ida, sua mulher, muitas vezes, quando precisava xingá-lo por alguma motivo, aproveitava a chance para chamá-lo de sonso, como se aquilo fosse balançar suas estruturas de homem pouco preocupado com o que se passava ao seu redor. A partir das seis da tarde, a hora em que exigia que lhe fosse servido o jantar, o seu Bernardino se acomodava no sofá, em frente à tevê, e perdia o mundo de vista. Até o dia em que, ao terminar o terceiro bloco do Jornal Nacional, precisou ir ao quarto, por algum motivo que agora não vem ao caso, e viu que a vizinha do lado estava em frente à janela, os cabelos molhados, enrolada numa toalha.
O seu Bernardino só se inteirou verdadeiramente da situação quando a toalha foi ao chão e ele pôde ver, a poucos metros de onde se encontrava, a vizinha nua, dos pés à cabeça. Antes de se concentrar no espetáculo, teve o cuidado de olhar o relógio e marcar a hora.
No dia seguinte, no momento em que terminava o terceiro bloco do Jornal Nacional, o seu Bernardino que, apesar de pacato, nada tinha de sonso, dirigiu-se discretamente ao quarto e viu confirmada a sua previsão de atento estrategista. Lá estava a vizinha, enrolada na toalha, recém saída do banho.
Primeira dedução do seu Bernardino: ela tomava banho na hora do JN, para não perder as novelas das sete e das oito. Primeira providência do seu Bernardino: deixar de ver o Jornal.
Acontece que um hábito de décadas não se muda assim, num toque de controle remoto, como quem troca de canal, e a dona Ida começou a desconfiar do marido.
O seu Bernardino nunca fora de perder o noticiário, ainda mais em dia de avião pegando fogo contra edifício em Nova York. Mas foi por puro acaso que a nova distração do marido acabou descoberta. Começou o noticiário sobre o atentado ao Word Trade Center e a dona Ida correu para o quarto, esbaforida:
“Dino! Dino, meu velho! Venha ver! A tevê, agora, tá mostrando de outro ângulo!”
“Obrigado, querida! Mas ao vivo tá bem melhor!”, disse ele, distraído, agarrado com as duas mãos às cortinas da janela.
Quando se deu conta da mancada, não tinha mais tempo para consertar o estrago. A dona Ida arrastou-o pela orelha até a sala de tevê e anunciou a sentença:
“A partir de hoje, senhor Antônio Bernardino, serei a talibã aqui desta casa, entendido!?”, disse, empurrando-o para o sofá. “E agora vamos ver o noticiário. Quero que você tenha, desde já, um briefing do inferno que vai ser a tua vida daqui para frente! Entendido, seu sonso!?”
Crônicas anteriores »