O avião em que o Moreira viajava sofreu uma pane assim que levantou vôo e foi obrigado a retornar imediatamente à pista, em situação quase trágica. O Moreira, então, muito estressado e em pânico não aceitou seguir em outro vôo, transferiu a viagem e correu de volta para casa.Assim que o elevador parou no seu andar, ele sentiu um cheiro estranho de fumaça infestando o ar. E quando identificou o cheiro começou a achar tudo aquilo muito estranho. Até onde tinha conhecimento, seus dois vizinhos de andar não fumavam charuto.
Teve alguma dificuldade para encontrar as chaves. Não estavam no bolso do casaco e foi encontrá-las, depois de muito custo, dentro da mala. É preciso dizer que tocar a campainha jamais passou pela cabeça do Moreira. Tinha tanta certeza de que Tita, sua mulher, estava trabalhando, que nem sonhou em chamá-la para abrir a porta.
Quando, finalmente, conseguiu entrar um bafo de fumaça veio de encontro a ele quase lhe embaralhando a visão. E atrás, enrolada numa toalha de banho, os cabelos soltos e desgrenhados, para surpresa do Moreira vinha a Tita.
"E esse cheiro horrível de charuto!?", perguntou ele, direto. "Posso saber quem está fumando charuto aqui?"
"Charuto!?", quis saber a Tita, fazendo um ar de surpresa. "Ah, sim! Eu estava pensando exatamente nisso quando você entrou, amor..."
O Moreira, então, empurrou-a com o ombro e correu para o quarto do casal. Ela seguiu atrás, o olhar aflito, segurando a toalha acima dos seios.
"Não é nada disso que você está pensando, amor!", ela ainda disse, tentando impedir que ele circulasse livre pela casa.
Mas o Moreira não lhe deu ouvidos, escancarou todas as portas, correu pela casa e olhou embaixo das camas e mesas. Ainda restava a dependência de empregada, quando ele viu o charuto em cima do cinzeiro, no criado mudo.
Atônita, Tita deixou cair a toalha expondo a ele toda a sua nudez.
"Eu explico", gritou ela, indignada, apanhando o charuto do cinzeiro. "Era eu que estava fumando, já que você insiste tanto em saber quem é o dono do puro!", continuou, agora mais agressiva, avançando contra ele. "E agora me diga, vamos: que mal há numa mulher fumar charuto, hein? Me diz! São só vocês homens que podem, é? Chauvinistas, porcos, é isso que vocês todos são!"
A Tita avançava sobre ele, transtornada, soltando baforadas de fumaça pelo nariz e pela boca.
"E quer saber do que mais? Este puro aqui é um Corona Gigante da Ramon Allones, tá sabendo? Ra-mon Al-lo-nes, totalmente a mano, tá sabendo?!"
Perplexo, o Moreira estendeu a mão espalmada como para pedir calma e recuou dois passos. Ela, uma fera nua e dourada sob a claridade filtrada das persianas, continuava a avançar com a brasa do charuto voltada para ele:
"Você sabe qual é a diferença entre um totalmente a mano e um hecho a mano? Sabe? Diga, vamos! Claro que não sabe, você não presta atenção nisso, tem coisas mais importantes pra se preocupar, não é!? Mas diga, diga, antes que eu te enterre essa brasa na cara, seu cretino! Vamos, diga qual é a diferença!"
"Calma, amor! Tudo bem, calma! Não precisa se alterar desse jeito!", reiterava o Moreira, a mão espalmada na altura do peito, as faces ainda vermelhas da tensão recente no aeroporto. "Só me diga uma coisa com toda a sinceridade: precisa deixá-lo todo babado e mascado na ponta, desse jeito?"
Dito isso, o Moreira deu meia volta e abriu a porta do banheiro. Mandou que ela ficasse com o seu charuto mascado, com seu Ramon Allones, com seu Corona Gigante, se isso realmente lhe dava prazer. Ele, agora, queria mais era relaxar. Ia passar o resto da tarde na banheira de hidromassagem para aliviar a sua TPPE - Tensão Pós-Pouso de Emergência.
E enquanto abria a torneira da banheira, ainda gritou de lá, zombeteiro de debochado:
"Ramon Allones... é? Você anda lendo muito o Rubem Fonseca, querida..."
Crônicas anteriores »