A única pista aparente do assassino era uma dentadura postiça caída ao lado do cadáver da mulher, atravessado sobre os lençóis amarfanhados da cama redonda. Da mulher não era, podia-se ter certeza. Estava com a boca aberta e dentro dela não lhe faltava um único dente. Pelo contrário, todos os seus dentes pareciam muito bem cuidados e com obturações apenas em um siso e dois molares.Depois de todas as averiguações policiais de praxe, o delegado, com um lenço branco na mão, apanhou a dentadura e tirou sua primeira conclusão:
"O assassino não tem dentes!!!"
"Pelo menos na arcada superior", completou um policial que andava por ali, às voltas com anotações e fotografias da chamada cena do crime.
O delegado virou-se para o rapaz e a impressão que se teve foi de que iria xingá-lo. Depois disse, um ar grave no rosto:
"Você tem razão. Pelo menos na arcada superior é certo que o assassino não tem dentes. A presença da dentadura comprova isso. Quanto à arcada inferior, não temos o mínimo indício. Qualquer palpite nesse sentido seria um verdadeiro tiro no escuro".
"Exatamente, chefe!", concordou o policial, atento e circunspecto. "O assassino tanto pode não ter dentes na arcada inferior e evitou que a dentadura caísse, como podia não estar usando dentadura na arcada inferior pelo simples motivo de que ali possui dentes".
O delegado fitou o policial de um jeito meio estranho e a primeira impressão foi de que iria perguntar se ele estava gozando da sua cara. No entanto, apesar da expectativa em contrário, seguiu em frente, no mesmo tom, talvez com ar um pouco mais grave:
"Há ainda uma outra hipótese, meu jovem: o assassino não tem dentes na arcada inferior e, no momento do crime, podia não estar usando a dentadura por algum motivo qualquer".
O policial sorriu, o delegado também, e se chegou a imaginar que os dois, por algum desvio de consciência, estavam brincando um com o outro.
"Mas há uma questão aí, doutor, que precisa ser exaustivamente analisada: haveria algum motivo para uma pessoa, que não tem dentes na arcada inferior, estar num quarto de motel, com uma bela mulher igual a esta, sem a sua respectiva dentadura?"
"Esse detalhe o assassino vai ter que explicar quando botarmos as mãos nele".
"Eu pergunto isso, doutor, por entender que a pergunta procede. Ou bem que o assassino tem dentes na arcada inferior e não houve necessidade de usar dentadura postiça na hora do crime, ou bem que usava dentadura e não a deixou cair".
"A nível de questionamento ainda acho que há uma terceira hipótese, meu jovem. Insisto que o assassino, por algum motivo, podia não estar usando a dentadura na arcada inferior no momento do crime".
"Mas porque motivo, doutor?"
"Essa é uma pergunta que apenas uma pessoa que usa dentadura postiça na arcada inferior pode responder"
O delegado olhou em volta.
"Alguém aí usa dentadura postiça?"
"Eu!", disse um homem com um jeito um tanto estranho, encolhido e acuado num canto do quarto, com uma navalha ensangüentada na mão direita.
"Em cima e em baixo?", perguntou o delegado.
O homem ainda pensou um pouco antes de responder.
"Só em cima, doutor".
"Então esse não serve!", disse o delegado.
"É, esse não serve", concordou o outro.
E mandaram que o homem "caísse da boca", que "circulasse", ele não tinha nada o que fazer ali, atrapalhando o serviço da polícia.
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