Quando o verão começa a ficar insustentável na cidade, a dona Nair arruma as malas e sobe para a Serra, onde o clima é mais ameno e melhor para a saúde. Calor é coisa que a dona Nair não agüenta por nada deste mundo. E o seu Ody, o coitado, que precisa garantir as extravagâncias da mulher na Serra, fica na cidade, comendo o pão que o diabo amassou.Foi num dia desses, de desolada solidão, que o sócio do seu Ody veio com a história de um grito de Carnaval no sítio de um amigo, fora da cidade, onde só ia gente distinta e da maior confiança. Ele apreciou tanto a idéia que nem hesitou ao ser advertido pelo sócio de que a festa era à fantasia.
Correu para casa, vestiu um longo vermelho da dona Nair, pegou uma fronha, também vermelha, improvisou uma máscara, e de uma vassoura de piaçava fez um tridente usando tiras de papel celofane.
Ao cabo de meia hora, se tanto, enfiou a fantasia numa sacola e ganhou a estrada. Antes de chegar ao local da festa, parou o carro no acostamento e trocou de roupa. Assim que chegou, localizou o sócio e começaram a conversar. Mas nem bem trocaram as primeiras palavras, o seu Ody botou o olho num anjo que cruzava a sua frente e cochichou no ouvido do amigo
"É com esse que eu vou!!!"
E foi sem vacilar, porque se vacilar, na opinião do seu Odyr, o anjo bate asas e volta para o céu.
Conversa vai, conversa vem, madrugada avançando solta, sereno caindo lá fora, e o anjo se rendeu à lábia do seu Ody de que em casa podiam ficar mais à vontade, ouvir uma música mais calma, comer algo mais sustancioso, coisa e tal.
O seu Ody só não imaginava que a dona Nair tivera uma crise de gota no início da noite e descera a Serra, às pressas, em busca de socorro.
Ao ver o diabo entrando em casa, em carne e osso, e a poucos metros do onde estava, a dona Nair reagiu com um rigor à altura da gravidade da situação. Arrancou um crucifixo da parede e gritou:
"Vade retro, sanatás!"
O seu Ody, perplexo, quis explicar a real:
"Nair! Olhe, sou eu, o Ody!"
Ela deu um pulo e gritou ainda mais alto, desgrenhada, como se estivesse mesmo vendo o diabo à sua frente, pronto para atacá-la:
"A mim tu não enganas, tinhoso das trevas!"
Nesse instante o seu Ody retomou a lucidez e correu porta afora. Assim que saiu, tirou a fantasia de diabo, pegou um pedaço de pau, voltou para dentro e demoliu a casa. Só então retornou ao quarto, onde estava a mulher, rezando com um rosário preso entre os dedos.
"Pronto Nair!", disse, limpando as mãos. "Botei o medonho a correr!"
"E o anjinho!?", inquiriu ela, ainda assustada.
"Se assustou, o coitado!!!"
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